A "Sagrada Família", uma valiosa pintura de Josefa de Óbidos, datada de 1664, que estava exposta num retábulo na capela com o mesmo nome, no Convento de Santa Cruz do Bussaco, "desapareceu" durante um cirúrgico e inexplicável incêndio que ali deflagrou na véspera de Natal de 2013.
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A Polícia Judiciária (PJ) concluiu que ardeu e o processo foi arquivado, mas há quem não tenha dúvidas de que se tratou de um furto. Pelo sim, pelo não, a Direção-Geral do Património Cultural mandou incluir a obra na convenção internacional que procura "Bens Culturais Roubados ou Ilicitamente Exportados".
Aparentemente, é um daqueles casos em que nunca se saberá a verdade. No processo, a que o JN teve acesso, o relato começa na manhã de 25 de dezembro de 2013, quando Sílvia Santos, professora e funcionária da Fundação Mata do Bussaco, foi, na companhia do colega José Luís, fazer a ronda habitual ao Convento de Santa Cruz, que a própria encerrara na véspera, 24 de dezembro, desligando todas as luzes e certificando-se de que não havia velas acesas.
Proibido acender velas
Por isso a sua estranheza quando na manhã seguinte, dia de Natal, mal entraram no convento viram fumo e sentiram forte cheiro a queimado. Rapidamente perceberam que vinham da Capela da Sagrada Família, onde já não havia chamas. Apenas sinais de ardido até há muito pouco tempo. Saíram e alertaram uma patrulha da GNR que passava perto. Já com os militares, entraram na capela, constatando que tinha desaparecido "A Sagrada Família" de Josefa de Óbidos, obra datada de 1664 e avaliada "em muitos milhares de euros (os quadros da pintora, um deles exposto no Louvre, atingem valores de centenas de milhares de euros).
Os militares, logo ali, desconfiaram das velas de cera cujos restos ainda se viam no que sobrou do altar. Porém, a funcionária afastou de imediato a hipótese, contando que era proibido acendê-las e sempre fora respeitada, sem exceções, a obrigação. De resto, ela própria passara ali na véspera, antes de fechar o convento, e tudo estava normal. A segunda hipótese, mais tarde acolhida pela PJ de Aveiro, mas rapidamente afastada, atribuía o incêndio a um curto-circuito. Impossível, pois não havia instalações elétricas no local. Apenas duas lâmpadas, mas na parede oposta àquela onde deflagrara o incêndio.
fogo seletivo
Mas outros indícios semearam dúvidas. Em cima do altar de pedra sobraram pequenos vestígios, carbonizados, mas apenas da moldura. Da tela, nem um bocadinho. Estranhamente, mesmo ao lado "sobreviveu, num nicho, um Menino Salvador do Mundo com as vestes púrpuras apenas chamuscadas", facto comprovado por todos, nomeadamente por Marta Simões, na altura responsável pelo setor do Património da Mata do Bussaco. Salientando a falta de segurança do local, Marta Simões escreveu um parecer onde afirma, sem tibieza, que "poderemos estar perante um crime de fogo posto, destruição do património e um crime de roubo de uma obra importante para a arte portuguesa".
A PJ haveria de afastar a teoria do roubo, apesar de ter constatado o que toda a gente já sabia: a falta de segurança que rodeava a capela onde estava o quadro. Havia acessos que eram "fechados" com uma corda. Fechaduras de segurança, nem vê-las. E essa é uma das circunstâncias que impedem que a tese do quadro destruído pelas chamas seja aceite por todos. A Judiciária acabou por privilegiar a teoria da destruição da obra pelo fogo, conclusão comunicada ao Ministério Público que, face a tal, mandou arquivar o caso.
Resíduos encontrados deixam muitas dúvidas por esclarecer
Da investigação da PJ pouca ou nenhuma luz se fez. Afastando a tese de curto-circuito, por não haver instalação elétrica na parede que albergava a obra, a conclusão é de que o incêndio terá começado no altar, tese repudiada pela funcionária que fecha e abre o templo. Sem dúvidas quanto a vestígios da moldura, na peritagem também terão sido identificados minúsculos resíduos de tintas e outros produtos, alegadamente datados da época do quadro e que apontariam para a tela. Mas a obra foi restaurada no final dos anos 2000 e, por isso, seria de esperar que esses "vestígios" apontassem também para essa data recente.