Paulo Pimenta: "Mandato da ministra da Justiça é praticamente uma inexistência"
O presidente do Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados lança celebração da Semana do Advogado.
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O Conselho Regional do Porto (CRP) da Ordem dos Advogados vai sentar à mesma mesa o conselheiro de Estado Lobo Xavier, o ex-ministro Aguiar-Branco, e os presidentes dos sindicatos dos juízes e dos magistrados do Ministério Público, Manuel Soares e Adão Carvalho.
O debate decorrerá na próxima terça-feira, durante as celebrações da Semana do Advogado, e será moderado por Paulo Pimenta, presidente do CRP, que, ao JN, antecipa várias críticas a juízes, procuradores e a uma ministra da Justiça que nada fez de "relevante".
Pimenta defende também o fim do "Ticão", dos megaprocessos e exige um modelo que acabe com a influência política na composição do Tribunal Constitucional e dos Conselhos Superiores.
A ministra da Justiça mantém condições para implementar as medidas necessárias à desejável reforma do setor da Justiça?
Questão prévia a quem quer que seja ministro da Justiça é o facto de, nos últimos anos, a Justiça estar longe de ser uma prioridade dos sucessivos governos, o que se revela tanto na dotação orçamental como no próprio discurso político.
Quanto à ministra Francisca Van Dunem, o seu mandato é praticamente uma inexistência, não havendo qualquer medida ou intervenção que possamos recordar como relevante. Há uma desilusão geral com o mandato da ministra. Por exemplo, a degradação crescente das instalações dos tribunais e edifícios sem qualquer dignidade para albergar um tribunal. Um dos casos mais graves é o do tribunal de S. João Novo, no Porto, que funciona em condições miseráveis, colocando em risco quem lá trabalha ou aí se desloca. Ao longo dos últimos anos, a ministra nunca ligou às alternativas propostas pela comarca do Porto.
As reformas necessárias no setor da Justiça implicam um governante capaz de congregar e mobilizar os diversos intervenientes, algo que Francisca Van Dunem nunca conseguirá, seja porque não tem peso político, seja porque não se lhe conhece uma visão estratégica sobre o sistema. A ministra esgota-se em coisas avulsas e isoladas, reagindo aos problemas e nada antecipando. Aliás, as declarações recentes da ministra da Justiça, referindo que há uma perceção geral de ineficiência da justiça, dizendo isto como se fosse uma mera observadora ou como se tal constituísse uma inevitabilidade, é uma espécie de epitáfio do seu mandato.
Como é que avalia a intervenção de Francisca Van Dunem no caso do "procurador europeu"?
Este caso é o episódio mais triste e lamentável do mandato da ministra, que envergonha o país. É inacreditável tudo o que se passou, a começar pela exclusão arbitrária do único candidato elegível (um juiz desembargador) e passando pela inversão da graduação feita por um júri internacional, escolhendo alguém que ficou em segundo lugar. Percebe-se que a ministra esteve diretamente envolvida na situação, não sendo, aliás, possível imaginar que coisa tão grave pudesse acontecer sem a caução da ministra.
Como se não bastasse, as explicações apresentadas pela ministra (e pelo primeiro-ministro) foram um atentado à inteligência dos portugueses.
Qual destas posições é mais do seu agrado: o fim do Tribunal Central de Instrução Criminal; o reforço do quadro de juízes do "Ticão"; a criação de um novo modelo de tribunal?
Primeiro que tudo, importa fazer uma constatação: a mera existência do Tribunal Central de Instrução Criminal e o seu modo de funcionamento, com apenas dois juízes e com os tipos de processos aí tratados, criou ambiente para uma espécie de competição gerida por certa comunicação social e pela opinião pública: de um lado, o "super juiz" e "preferido" pelo Ministério Público; do outro, o "inimigo" do Ministério Público e complacente com os arguidos.
O recente caso do "processo Marquês" foi a gota de água, com o inacreditável linchamento do juiz Ivo Rosa, que é consequência direta de uma intoxicação da opinião pública ao longo de anos, que levou os cidadãos a darem como certo que o rumo do processo seria necessariamente conforme à acusação do Ministério Público.
Defendo a extinção deste tribunal e a integração das suas competências no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, cujo quadro de juízes evitará a "pessoalização" a que temos assistido e que é perniciosa para a confiança que os cidadãos devem ter nos tribunais.
Os megaprocessos são um entrave a uma rápida e eficaz Justiça?
Num caso ou outro, poderá até ser inevitável um megaprocesso, mas isso não pode ser a regra. O que sucede é que o Ministério Público parece ter uma particular apetência por este tipo de processos, mais a mais porque, quase sempre, isso desagua no Tribunal Central de Instrução Criminal, onde exerce funções o tal "super juiz". Ainda que não haja conexão entre uma coisa e outra, a ideia está instalada.
Mais grave ainda é os megaprocessos demorarem anos a fios e, tantas vezes, acabarem em "mega absolvições". Só que, entretanto, os visados viram a sua vida pessoal e profissional irremediavelmente destroçada. Como os megaprocessos legitimam mais facilmente prisões preventivas, escutas telefónicas e outras medidas intrusivas, as absolvições decretadas anos mais tarde não apagam as atrocidades e os abusos que se cometeram.
Impõe-se mudar uma certa cultura justiceira de que estão tomados certos setores do Ministério Público, pois isso não é próprio de um Estado de Direito. No mais, é evidente que este tipo de processos não contribui para a eficiência e rapidez da justiça.
Considera os tribunais administrativos e fiscais "autênticos poços sem fundo". Porquê?
É verdade que os tribunais administrativos e fiscais ficaram para trás, por várias razões. Primeiro, porque, durante vários anos, as regras processuais aí aplicadas não acompanharam a evolução verificada noutros tipos de processos, sendo tudo muito formal e burocrático. Segundo, porque o quadro de juízes sempre foi deficitário, o que impediu qualquer resposta adequada às pendências.
A ineficiência destes tribunais é largamente negativa para própria economia e para cidadãos e empresas. É inaceitável aguardar dez ou mais anos por uma decisão sobre um concurso público ou sobre o embargo de uma obra ou sobre a devolução de impostos indevidamente cobrados. Enquanto não houver decisão tudo fica "pendurado". É difícil esperar investimento estrangeiro, que é pautado por critérios de eficiência, quando aquilo que temos para oferecer é um "poço sem fundo".
Para recuperar o atraso, há que dotar estes tribunais de meios bastantes, humanos e não só, o que sempre demorará anos. Como em grande parte dos processos é visado o próprio Estado, às vezes parece que não há grande interesse em alterar o estado de coisas.
Há interferência política na composição do Tribunal Constitucional e dos Conselhos Superiores de Magistratura e do Ministério Público?
Quanto ao Tribunal Constitucional, queiramos ou não, a sensação que se vai instalando é de que a sua composição resulta de "acertos" partidários. Aliás, a comunicação social apresenta a questão sempre nesta perspetiva. É grave para os juízes ficarem "marcados" por este estigma, levando a um ponto em que parece possível antecipar o sentido de certas decisões em função disso. E isso abona pouco para o prestígio de um órgão tão importante como o Tribunal Constitucional.
Quanto aos Conselhos Superiores, apesar de as coisas terem vindo a melhorar, é difícil evitar a ideia de um certo corporativismo e de um certo fechamento.
O assunto é complexo, mas penso que o modelo está esgotado e seria de ponderar a solução que foi proposta há vários anos pelo Dr. Laborinho Lúcio, isto é, um Conselho Superior de Justiça que congregasse todo o mundo judiciário num único órgão, atenuando ou eliminando corporativismos e assegurando uma gestão uniforme e coordenada.
O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras é uma polícia violenta? A presença de advogados nos pontos de controlo de fronteiras irá acabar com a violência?
Por princípio, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras nem é uma entidade policial, mas tem evoluído com atitudes e procedimentos que transformaram uma entidade administrativa numa polícia, com centros de detenção e tudo, fora de qualquer controlo e sem que os cidadãos intercetados tenham apoio de advogado. Aliás, os advogados costumam ser impedidos de conferenciar privadamente com os detidos, o que é uma grave violação de direitos fundamentais.
E, sim, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras atua com violência e fá-lo sobre pessoas indefesas e especialmente vulneráveis, até por razões de idioma. Como é evidente, nada disso sucederia se as diligências fossem acompanhadas por advogado, único profissional capaz de fazer frente aos serviços do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e de evitar abusos. Não haveria um agente do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras que se atrevesse a pisar o risco.
Os montantes indemnizatórios pagos pelo Estado, em casos de morte em que fique provada a negligência ou culpa de entidades públicas, são sempre justos e equivalentes?
Há casos de total desfasamento das indemnizações atribuídas em certos casos mediáticos, por via da intervenção da Provedoria de Justiça, relativamente às indemnizações fixadas pelos tribunais. Exemplo disso são exemplo os incêndios de Pedrógão e a morte do cidadão ucraniano às mãos dos operacionais do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
Não discutindo a bondade de tais indemnizações, importa reconhecer que há uma notória discriminação relativamente aos outros casos em geral. Parece que isso decorre da necessidade sentida pelo Governo de atenuar a pressão da opinião pública, seguindo as sugestões da Provedoria de Justiça.
Ainda esta semana a Ordem dos Advogados denunciou uma situação em que uma juíza indeferiu um requerimento de adiamento de audiência, apresentado por uma advogada que pretendia acompanhar o filho numa consulta. Perante este e outros casos, considera que os advogados são mal tratados e desrespeitados nos tribunais?
Não conheço o caso em concreto e não me posso pronunciar. Sempre houve e sempre haverá, aqui e ali, desinteligências entre juízes e advogados. A questão é saber se a lei é ou não cumprida. Aquilo que espero dos advogados é que estejam à altura de reagir contra abusos ou prepotências, sempre com respeito, mas com firmeza, até porque o que está em jogo não são interesses dos próprios advogados, mas os dos cidadãos por si representados.
Nunca fui mal tratado nem desrespeitado num tribunal, mas também não permitiria que tal sucedesse impunemente. Sucede que, a pretexto da pandemia, foram tomadas medidas cegas e arbitrárias em inúmeros tribunais, mas também em repartições públicas, impedindo literalmente os advogados de fazerem valer, sempre em representação dos seus constituintes, as prerrogativas inerentes à profissão. Se isso é grave, mais grave é que, em muitos casos, tenha sido com a complacência de juízes ou magistrados do Ministério Público, alguns deles por acharem que os advogados não fazem falta nos processos e que tudo correria melhor sem a intervenção de advogados.
Quem assim pensa está profundamente errado, pois jamais haverá justiça, seja em que jurisdição for, sem que os interessados estejam acompanhados e aconselhados por advogado. A ausência de advogado gera condições para o arbítrio e o abuso de poder.
No atual contexto, a celebração da Semana do Advogado deve ser reforçada?
A celebração da Semana do Advogado é uma tradição em torno da figura de Santo Ivo, patrono dos advogados, e tem toda a razão de ser qualquer que seja o contexto, mas com especial significado nos momentos, como o atual, em que há sinais preocupantes de restrições de direitos, liberdades e garantias, em diversos níveis.
Qual é o principal objetivo do Seminário promovido pelo Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados?
No âmbito das atividades promovidas pelo Conselho Regional do Porto, o debate "Horizontes da Justiça", que reúne António Lobo Xavier, advogado e conselheiro de Estado, José Pedro Aguiar-Branco, advogado e ex-ministro da Justiça, Manuel Soares, juiz desembargador e presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, e Adão Carvalho, procurador da República e recentemente eleito presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, é uma oportunidade para ouvir quem conhece a realidade, quem tem experiência e quem aceita o contraditório, isto é, aceita a divergência de opiniões, o que augura uma boa jornada.