O Tribunal da Relação de Évora condenou a Administração do Porto de Lisboa (APL) e a seguradora Fidelidade a pagar uma pensão à mulher e ao filho de um piloto da barra de Lisboa que, em 2018, morreu afogado. A vítima caiu ao mar quando desembarcava do navio mercante "Singapore Express" para a lancha de pilotagem "Torre de Belém" ao largo da baía de Cascais.
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O acórdão, datado de 2 de março, rejeitou o recurso interposto pela APL e confirmou a decisão do tribunal de 1.ª instância que tinha julgado procedente a ação no valor de 956 mil euros, intentada pela viúva do comandante Miguel Conceição e pelo filho menor.
Assim, a seguradora e a empresa vão ter de pagar, além dos subsídios de férias e de Natal, uma pensão anual e vitalícia à mulher da vítima de mais de 18 mil euros até à idade da reforma e de mais de 24 mil euros a partir desta idade. Já o filho terá direito a cerca de 12 mil euros anuais até aos 22 ou, se continuar a estudar, até aos 25. Nos dois casos, os valores são retroativos desde a data da morte. Além destas quantias, a APL terá de desembolsar a título de danos não patrimoniais 140 mil euros: 40 mil à viúva e 30 mil ao filho pelos danos sofridos com a perda do marido e pai, respetivamente, e 70 mil euros em conjunto pelo dano de morte.
Inconformada com a decisão, a empresa pública tinha recorrido para a Relação de Évora alegando que o acidente de trabalho se tinha ficado a dever à violação das regras de operação de desembarque por parte do piloto. No entanto, os juízes desembargadores entenderam que "não é possível concluir que o sinistrado tivesse adotado voluntariamente um qualquer comportamento violador de uma qualquer regra de segurança", perante "tantas variáveis", como a chuva, a ondulação, o vento ou o barulho.
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No recurso, o Porto de Lisboa argumentou ainda que o socorro tinha sido dificultado devido ao agravamento das condições climatéricas e ao facto de a lancha do Instituto de Socorro a Náufragos (ISN), que devia auxiliar no resgate, ter demorado uma hora a chegar ao local. A isto, sugeriu, acrescia a obesidade e a possível falta de destreza do piloto, que apresentava "canabinóides (e metabolitos) no sangue em concentrações inferiores às consideradas terapêuticas".
Porém, os magistrados recordaram que, apesar de a vítima ter sido considerada clinicamente obesa (99kg), "a própria APL a considerou fisicamente apta para o desempenho das suas funções". Além disso, acrescentaram que, "apesar de ser indesmentível que a lancha do ISN demorou imenso tempo, competia à lancha da APL prestar tal auxílio, não só por se encontrar no local, como por dever estar equipada com todos os meios adequados ao resgate de um piloto à água".
APL não deu formação
O acórdão, assinado pelos juízes desembargadores Emília Ramos Costa, Mário Branco Coelho e Paula do Paço, conclui ainda que a APL violou as "regras de formação, informação e de segurança" a que estava obrigada. Para o coletivo, ficou provado que a entidade empregadora não deu treino à vítima, sobretudo em situação de emergência de "homem ao mar", nem deu formação sobre técnicas de sobrevivência em água fria ou de utilização do equipamento de proteção individual. Até ao acidente, também nunca tinham sido feitos exercícios de segurança no porto de Lisboa em ambiente real.
Como foi o acidente?
Miguel Conceição tinha embarcado no navio "Singapore Express", do tipo porta-contentores, para aconselhar o comandante nas manobras de largada do cais e na navegação de saída do porto. Já o desembarque seria feito com recurso à lancha dos pilotos "Torre de Belém" que, na ocasião, era composta por três trabalhadores: um mestre, um motorista e um marinheiro.
A vítima saltou, pelas 00.47 horas, da escada pendurada no costado do navio para o convés da lancha quando caiu ao mar. Por causa das condições adversas, com ondas de quatro metros, não foi possível alcançá-lo no imediato. O corpo só viria a ser recuperado às 2.28 horas.
49 acidentes em três anos
O porto de Lisboa é um porto aberto à navegação 24 horas por dia e sete dias por semana. O recurso ao serviço de pilotagem é obrigatório em toda a zona navegável do rio Tejo e até ao limite exterior de seis milhas, centrado no farol de São Julião.
De 2015 a 2017, ocorreram 49 acidentes de trabalho com trabalhadores da APL. Desses, 36 foram sofridos por trabalhadores da Direção de Segurança e Pilotagem, dos quais 20 eram pilotos.
Marcelo lamentou "trágico acidente"
Natural do Cartaxo, Miguel Conceição tinha 45 anos e era um piloto experiente com 21 anos de operações de embarque e desembarque. Cinco meses antes do acidente, tinha adquirido casa com a mulher, com quem estava casado há mais de 11 anos. Quando se esgotaram as poupanças do casal, a viúva, de 41, viu-se obrigada a pedir ajuda à irmã para satisfazer necessidades básicas. Com a morte do marido, entrou num estado depressivo e teve de recorrer a consultas de psiquiatria e psicologia. Também o filho, à data com sete anos, baixou as notas escolares.
O presidente da República lamentou, na altura, o "trágico acidente" que vitimou Miguel Conceição e solidarizou-se com os pilotos das barras portuguesas naquele que considerou ser um "momento de luto para a classe profissional".
Fidelidade paga funeral
A seguradora pagou 2.830,74 euros a título de subsídio por morte e 3.774,32 euros de despesas de funeral.