Clã já foi condenado pelo Tribunal de Bragança a mais de oito anos de prisão, mas sucessivos recursos impedem cumprimento das penas. Processo está parado há quase um ano.
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Uma vítima de tráfico de seres humanos espera há mais de uma década que a família que a explorou seja punida. O clã familiar, que recrutou dezenas de pessoas fragilizadas para as escravizar, já foi condenado a penas de prisão, mas sucessivos recursos têm impedido que seja encarcerado. E há quase um ano que o processo está parado, devido a doença do juiz do Tribunal de Bragança, que tem de refazer o acórdão.
Na quinta-feira, no Seminário "Tráfico de seres humanos: o tempo da justiça e o tempo da vítima", organizado pela Polícia Judiciária (PJ) e pela Câmara do Porto, o procurador Miguel Ângelo Carmo defendeu que casos como este provam que a vítima de crimes ainda é olhada de forma "tímida" pelos magistrados. "A relevância da vítima tem de subir no processo penal", afirmou.
Corria o ano de 2000 quando "Maria", de 23 anos, foi iludida com a promessa de um bom salário para trabalhar em Trás-os-Montes, onde vivia, mas sobretudo nas vinhas da região espanhola de La Rioja. Contudo, o sonho de uma vida melhor transformou-se em 12 anos de cativeiro, durante os quais trabalhou sem receber, foi chicoteada e posta em barracos, onde era torturada com água gelada. Foi ainda violada por um membro do clã e engravidou. Os traficantes agrediram-na para que abortasse, mas viram-se obrigados a levá-la ao Hospital de Bragança.
Estávamos em março de 2011. Os médicos perceberam que a grávida estava coagida pelas três mulheres que a acompanhavam e denunciaram o caso. Em poucos meses, a PJ libertou quatro escravos, incluindo "Maria", reféns em Alfândega da Fé.
Relação anula acórdão
Durante a ação policial, o casal de traficantes, duas filhas e um genro foram detidos, todavia, não chegaram a estar um dia sequer na prisão. O juiz de instrução criminal impôs-lhes apenas apresentações semanais no posto da GNR e proibiu-os de contactar as vítimas. "A não promoção da prisão preventiva foi algo que nos surpreendeu", confessou, ontem, o inspetor da PJ do Porto Sebastião Sousa.
Foi, portanto, em liberdade que todos esperaram quase seis anos pela acusação. O julgamento começaria, em Bragança, em janeiro de 2018. E, no início de 2020, o casal e uma filha foram condenados a mais de oito anos de prisão, por tráfico de pessoas, escravidão e aborto tentado. Porém, tal como a segunda filha condenada a pena de prisão suspensa, ninguém foi para a cadeia, devido a um recurso que levou o Tribunal da Relação de Guimarães (TRG) a devolver o processo à primeira instância. Em outubro de 2021, um segundo acórdão do Tribunal de Bragança manteve as penas iniciais. Mas, passado um mês, foi apresentado novo recurso, no âmbito do qual o TRG voltaria, já em junho do ano passado, a anular a condenação. O processo regressou ao Tribunal de Bragança, para este proferir o seu terceiro acórdão.
"Está parado desde essa altura devido a impedimento, por doença, do juiz", revelou, ao JN, a advogada da vítima, Alexandra Bastos. "Infelizmente, há muito caminho pela frente, até que a vítima seja ouvida de forma plena", antevê.
Filha de "Maria" também foi escravizada por "avós" e "tios"
Quando saiu de casa, "Maria" levou consigo a filha, de dois anos, e a criança também se tornou uma escrava. Concluído o 4.º ano de escolaridade, "Vitória" foi proibida de regressar à escola, para ficar responsável pelos netos do clã e lides domésticas. Ao longo de 12 anos, só se encontrou às escondidas com a progenitora, a quem estava proibida de chamar mãe. Os "tios" e "avós" eram os seus próprios traficantes, pois era assim que estava obrigada a tratar os elementos do clã. Enquanto andou na escola, era forçada a entregar os trabalhos realizados para celebrar os dias da mãe e do pai a quem a mantinha fechada numa habitação de Alfândega da Fé. "Vitória" foi resgatada pela PJ na mesma altura que a mãe e é já uma mulher adulta. Ontem, em entrevista divulgada no seminário, mostrou-se muito desiludida com a demora da Justiça.
Sinalizações
Mais de 100 vítimas
A Equipa Multidisciplinar Especializada do Norte para Assistência a Vítimas de Tráfico de Seres Humanos, da Associação para o Planeamento da Família, sinalizou, entre 2020 e 2022, 116 vítimas de tráfico de seres humanos.
Portugueses no topo
Cerca de 17% das vítimas eram portugueses, traficadas em Portugal ou para o estrangeiro. As vítimas de nacionalidade brasileira representam 15% do total.
Trabalho e sexo
Das vítimas identificadas, 46% foram alvo de exploração laboral. A exploração sexual (15%) também é relevante.