Uma mulher de 48 anos foi detida pela PSP de Évora para cumprir uma pena de prisão efetiva de nove anos e meio por 12 crimes de maus tratos a idosos e dois crimes de desobediência. A arguida explorou dois lares ilegais sem quaisquer condições dignas. Uma utente ficou três dias com o fémur partido até a filha a levar para o hospital.
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O lar ilegal no Bairro da Comenda, em Évora, foi encerrado pela PSP em 2019. As autoridades constataram que os espaços explorados pela arguida não tinham licença, nem as condições mínimas de funcionamento. Não tinham eletricidade por vários dias, nem estruturas básicas e serviam alimentos estragados aos utentes que eram vítimas de maus tratos.
"A ausência de qualquer juízo crítico relativamente ao seu comportamento apurado nestes autos é flagrante"
Mesmo com ferimentos óbvios, a arguida negava-lhes tratamentos médicos e não lhes prestava os cuidados básicos de higiene. Quando as autoridades entraram no espaço, em janeiro de 2019, descobriram que lá estavam alojadas oito mulheres e um homem com idades entre os 85 e os 90 anos. Tinham a roupa suja, com nódoas e encardida, e exalavam odor a urina, tendo as respetivas peles um ar encardido.
Sem eletricidade e casa a três graus centígrados
Não havia eletricidade. A temperatura no interior da casa era de três graus centígrados. Havia apenas uma casa de banho e as paredes estavam sujas e com bolor.
A mulher seria condenada a nove anos e meio a 24 de janeiro de 2022. Recorreu para a Relação de Évora que, a 13 de setembro, rejeitou o recurso. Não voltou a interpor recurso pelo que, após trânsito em julgado da sentença, ontem, terça-feira, a PSP deteve-a para começar a cumprir a pena de prisão.
Escaras do tamanha de uma moeda
Segundo a sentença a que o JN teve acesso, a arguido começou a explorar lares ilegais pelo menos desde 2016. Cobrava entre 400 a 600 euros mensais por cada utente. Em 2016, a filha de uma utente de 84 anos descobriu a mãe suja e num divã da sala. Tinha diversas escaras, algumas do tamanho de uma moeda, por ter ficado demasiado tempo imobilizada, sem mudar de posição. A mulher de imediato retirou a idosa do lar e fez queixa.
Nessa mesma semana, dois inspetores da Segurança Social foram ao local, mas a arguida disse que apenas estava a cuidar dos seus avós e negou-lhes a entrada, mesmo tendo sido avisada de que estava a incorrer num crime de desobediência.
"Acode-me, acode-me!"
Em abril de 2017, uma idosa de 96 anos caiu e partiu o fémur. Apesar de se ter queixado de fortes dores e de apresentar equimoses, a arguida nada fez. Três dias depois, quando os sobrinhos a foram visitar, viram-na com a fralda cheia de urina e a queixar-se de dores. Ao vê-los, a idosa disse de imediato à sobrinha: "Acode-me, acode-me". Levaram-na imediatamente para o hospital, onde lhe foi diagnosticada a fratura do fémur.
Alugou outra vivenda para escapar às autoridades
A 20 de julho de 2017, a arguida foi notificada para encerrar de imediato o estabelecimento por falta de licenças. A mulher decidiu então alugar uma nova moradia para onde transferiu os utentes. O novo espaço, no Bairro da Comenda, continuava a não ter quaisquer condições mínimas de funcionamento.
Os estores estavam todos fechados e a temperatura interior rondava os três graus centígrados
Em outubro de 2017, uma mulher de 91 anos de idade feriu-se numa perna. A arguida não lhe providenciou qualquer assistência médica. Quando a filha da utente a questionou, ela disse que estava "apenas raspada, que não era nada demais". A filha levou a mãe ao centro de saúde onde viram que a ferida já tinha infetado.
Aquando da busca, a 9 de janeiro, as autoridades depararam-se com um autêntico lar dos horrores. A casa não tinha eletricidade, porque a luz tinha sido cortada por falta de pagamento, uma situação que ocorreu pelo menos por seis vezes, sendo que, numa delas, a habitação ficou seis dias sem eletricidade.
Os estores estavam todos fechados e a temperatura interior rondava os três graus centígrados. Sentia-se um odor a urina e a mofo, havendo lenços, guardanapos e cotão no chão de todas as divisões. Os colchões tinham manchas de urina e os lençóis e cobertores sujos e com nódoas. As paredes da casa tinham manchas de bolor e marcas pretas de sujidade.
Arguida partilhava cama com uma utente
A mulher partilhava uma cama de casal com uma utente. Às 9.50 horas, quando as autoridades lhe bateram à porta, ela ainda estava a dormir e os utentes, sem qualquer alimentação ou medicação. Tiveram que ir a um café próximo adquirir o pequeno-almoço para os utentes porque na casa não existiam alimentos em condições para esse efeito.
Quando as autoridades lhe bateram à porta, ela ainda estava a dormir e os utentes, sem qualquer alimentação ou medicação
Os utentes ficavam sempre sentados num sofá ou deitados a ver televisão. Não tinham qualquer outra forma de entretenimento, nem sequer eram levados ao exterior para um pequeno passeio e apanhar sol.
Um dos utentes dormia vestido e no sofá apenas tapado por uma manta. Outro utente deveria fazer oito horas de oxigénio diárias, mas nunca as fez apesar de ter sido fornecida uma máquina para esse efeito, que se encontrava desligada.
Medicamentos sem qualquer indicações
Apenas uma utente tinha os seus medicamente organizados em "blisters" porque tinham sido preparados para ela na farmácia. A medicação dos restantes utentes encontrava-se espalhada por várias divisões, sobre e no interior dos móveis sem qualquer referência a quem e quando deveriam ser administrados.
Na casa de banho, não existiam suportes na banheira e nas paredes, existindo apenas um banco de plástico no interior da banheira. O interior da divisão não era acessível a cadeira de rodas ou a uma pessoa com andarilho. Não existia tampo de sanita, toalhas ou produtos de higiene básicos como escovas, escovas de dentes, pastas de dentes, sabonetes ou champôs.
A cozinha tinha bolor nas paredes e gordura espalhada pelo fogão, azulejos e armários. No balcão, existiam pacotes de cereais, pacotes de bolachas, tachos, panelas, caixas de medicação, panos de cozinha, louça lavada e louça suja, que se encontrava no interior do lava-louça.
Apesar de ser manhã cedo, no fogão estava uma frigideira com três costeletas, uma panela com canja, outra com esparguete e no interior do fogão um resto de empadão, desconhecendo-se quando foram confecionados e fornecidos aos utentes. Nos armários coexistiam alimentos, louça e medicamentos. O frigorífico tinha manchas pretas no interior,
"Sabia que molestava a saúde dos utentes"
A cozinha tinha bolor nas paredes e gordura espalhada pelo fogão, azulejos e armários.
A sentença a que o JN teve acesso considerou que a arguida "sabia que molestava a saúde física e psíquica dos utentes, que os ofendia na sua dignidade, honra e consideração, que violava a sua integridade física e psíquica, os seus sentimentos de segurança pessoal, bem-estar, de autoestima e amor-próprio, bem sabendo que lhes provocava grande sofrimento físico e psíquico, o que pretendeu e fez de forma reiterada".
Em 2013, a mulher já havia sido condenada a 200 euros de multa por exploração ilícita de jogo; em 2018, fora condenada por abuso de confiança a quatro anos de prisão, pena ficou suspensa e foi condenada a pagar mais de dez mil euros ao queixoso. Já em 2019, foi condenada outra vez por abuso de confiança a quatro anos e dez meses de prisão, ficando a pena suspensa sob a condição de pagar 23 mil euros ao ofendido.
Juízes "estupefactos" com recurso
A arguida recorreu para a Relação de Évora considerando que a pena tinha sido excessiva. Os juízes negaram provimento ao recurso e mantiveram a decisão. No acórdão, de 13 de setembro, os juízes desembargadores confessam quem perante o comportamento da arguida - que esta não contestou - ficaram "quase estupefactos" com a sua declaração de que "trabalhava com idosos por gosto, que os acarinhava e que não teve nunca o propósito de os explorar".
"A ausência de qualquer juízo crítico relativamente ao seu comportamento apurado nestes autos é flagrante", acusam os juízes, explicando que, dados os factos e o seu contexto, não vislumbram como reduzir as penas de prisão. Assim, foi condenada a nove anos e meio de prisão, tendo começado a cumprir essa pena já no dia de ontem, terça-feira.