O Ministério Público iniciou 907 inquéritos criminais no ano passado. Especialistas avisam que é preciso levar aumento a sério.
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Aos 74 anos, admitiu em tribunal que regou com gasolina a mulher, com 68, e ateou-lhe fogo, depois de 15 dias a persegui-la por não aceitar o fim do casamento. A mulher morreu. O caso é um exemplo de como o crime de perseguição pode rapidamente escalar para comportamentos que, no limite, podem levar à morte. Daí que os especialistas avisem que é preciso levar a sério um delito que, em cinco anos, viu duplicar o número de queixas e inquéritos abertos pelo Ministério Público.
Perseguição, stalking ou assédio persistente são formas de classificar o mesmo comportamento, punido por lei desde 2015. Em 2016, o número de inquéritos abertos pelo crime de perseguição foi de 482. Desde então, foi sempre a subir: 658 no ano seguinte; 682 em 2018; 894 em em 2019; e 907 no ano passado. O número de 2020 é quase o dobro de 2016, o que revela "uma maior consciencialização para o problema", comenta Marlene Matos, coordenadora do Grupo de Investigação sobre Stalking da Universidade do Minho.
A investigadora é coautora de uma investigação de 2019 sobre o fenómeno. De uma amostra de 1210 vítimas, concluiu que a relação prévia entre perseguidor e vítima pode corresponder a "comportamentos mais intrusivos e mais ameaçadores", além de "maior risco de insistência e reincidência".
Ao JN, na véspera do "Dia de luto nacional pelas vítimas de violência doméstica", que se assinala este domingo, Daniel Cotrim, da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, corrobora: "O aumento destas queixas está na sua grande maioria associada ao crime de violência doméstica. A partir do momento em que a vítima deixa uma relação abusiva, na maioria das vezes a pessoa agressora decide encetar a perseguição".
O que por vezes pode parecer um comportamento inofensivo pode escalar rapidamente para atos violentos, explica Daniel Cotrim: "O problema é a aceitação, por parte dos outros e das autoridades, de que aquele é um comportamento de risco. Falamos em mensagens carinhosas ou tentativas de marcação de encontros que, se não forem tidas em conta, podem degenerar em casos de tentativas de homicídio".
Profissionais expostos
Marlene Matos sublinha que "é preciso levar a sério" o fenómeno da perseguição em Portugal, pois "desvalorizar os comportamentos é meio caminho andado para eles se agravarem".
A investigadora explica que as perseguições decorrentes das ex-relações "são as que comportam, à partida, maior risco". Mas há outros tipos. "Há vítimas de pessoas que são vizinhos ou amigos, há as vítimas dos desconhecidos, há as celebridades que são alvo de perseguição e há o grupo das categorias profissionais que são mais alvo de perseguição", enumera. Os profissionais mais expostos são os que lidaram diretamente com o perseguidor, como profissionais da justiça, da ação social ou da saúde. Nestes casos, o "stalker" age por um de dois motivos: ou quer iniciar uma relação, ou quer vingar-se de uma decisão da qual discordou.
Medida de coação
Revisão da lei que proibiu contactos antes da sentença não é monitorizada
Até agosto de 2019, a lei não permitia que as medidas de afastamento do perseguidor em relação à vítima fossem aplicadas antes do trânsito em julgado da sentença. A circunstância deixava as vítimas desprotegidas enquanto o processo não era concluído. Após uma notícia do JN, de dezembro de 2018, vários partidos apresentaram projetos de lei, que levariam a uma mudança da lei e, a partir daí, a proibição de contactos passou a ser possível como medida de coação para arguidos por perseguição. No entanto, a alteração legislativa não foi acompanhada da respetiva monitorização e não se sabe, hoje, quantos perseguidores foram afastados das vítimas, antes ou depois do julgamento. O JN tentou, por vários meios, obter essa contabilidade, mas nenhum dos organismos ligados à Justiça têm compilados tais dados.