A procuradora-geral europeia, Laura Kövesi, que tem apenas mais um ano de mandato, espera ter lançado bases sólidas de trabalho para o seu sucessor, de quem espera que mantenha a linha de independência que diz ser a marca da instituição.
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"Para mim, a independência é uma linha vermelha. Ninguém a pode ultrapassar", disse a líder da Procuradoria Europeia (EPPO, na sigla inglesa), em entrevista à Lusa, num balanço do seu mandato que termina em outubro de 2026 e perspetivando o futuro da instituição que ajudou a montar.
Laura Kövesi, que enfrentou fortes pressões políticas devido a investigações de elevada sensibilidade - como as que envolveram eurodeputados em alegadas fraudes financeiras, ou a compra de vacinas contra a covid-19 pela Comissão Europeia, que colocou a sua própria presidente Ursula Von der Leyen na linha da frente da investigação - orgulha-se da independência do organismo e de todos os procuradores que o compõem, que "não aceitam interferências" no seu trabalho.
Orgulha-se também de ter desmentido algumas perceções.
"Por vezes tive a impressão de que pensavam que a EPPO seria um pequeno gabinete que faria uma investigação de tempos a tempos. Mas assim que fui nomeada e que pusemos tudo em funcionamento soube que isso não iria acontecer. Sabia que a EPPO seria independente, forte e eficiente. Após os primeiros anos em atividade, já provámos o nosso valor acrescentado. E isso não pode ser mudado", disse.
"Diria que a EPPO não é uma instituição, é um espírito, sabe?", acrescentou, sobre o que também espera ser o legado institucional para o seu sucessor, mesmo num clima de crescente polarização ao nível da União Europeia e de crescimento da extrema-direita, factos políticos que recusou comentar no seu estrito papel de procuradora.
"Espero que o meu sucessor continue na mesma linha. Isso significa que ele ou ela tenha coragem suficiente e força para o fazer", afirmou.
Criminalidade financeira cada vez mais violenta
Desvalorizando as pressões, Kövesi disse que as verdadeiras dificuldades foram, primeiro por a EPPO em funcionamento e definir o seu modelo e depois lidar com "o continente de crime" que a instituição encontrou.
"Se toda a gente achava que a criminalidade financeira era uma criminalidade de nicho, enganou-se. É o centro da criminalidade e está a tornar-se cada vez mais violenta", disse.
Para além da falta de meios - porque os procuradores não podem continuar apenas a trabalhar dependentes do seu "entusiasmo e coragem" - Laura Kövesi lamenta também alguma falta de colaboração institucional entre organismos da União Europeia, nomeadamente o OLAF, de luta contra a fraude, mas rejeita qualquer espírito de competição: "Competição só com os criminosos, não entre nós".
No futuro da EPPO podem também vir a estar novas atribuições de competências, nomeadamente de investigação de violações de sanções da União Europeia a países, empresas ou indivíduos, agora equiparadas a crimes, mas tal está ainda dependente da vontade do legislador.
"É algo que dizemos que podemos fazer, que estamos preparados para fazer e estamos realmente determinados em fazer", disse Kövesi.
Ficariam assim na alçada da EPPO as investigações a violações de sanções relacionadas com a invasão russa na Ucrânia ou até, se tal vier a acontecer, de sanções a Israel pela guerra e genocídio em Gaza.
As divisões políticas que estas matérias levantam dentro da União Europeia não preocupam Kövesi, que enquanto procuradora olha para a questão de um ponto de vista de aplicação da lei.
"Para mim é preto ou branco. Olho para isto sobretudo do ponto de vista judicial, porque num sistema democrático a justiça serve o cidadão. Num sistema tirânico, a justiça serve o tirano ou um grupo específico de pessoas. Temos de escolher um lado. Espero que todos escolham o lado certo nisto. [Espero que] todos escolham o Estado de direito e uma justiça que sirva os cidadãos. É por isso que tomo posição", disse, apontando para o seu laço na lapela com as cores da Ucrânia.
A procuradora, que muitos rumores associam a um futuro na política, rejeita por completo esse cenário e diz que depois da EPPO se vê a continuar ligada ao mundo judiciário e à educação.
"Sei exatamente o que não vou fazer. Não vou entrar na política", garantiu.
Recuperar milhões de euros para o Estado português
Tomando por exemplo duas grandes investigações que envolvem Portugal, a operação Admiral e a operação Ambrosia, casos de fraude ao IVA, um dos crimes mais praticados e mais investigados pelo organismo, Laura Kövesi sublinhou que estes dois processos podem representar 75 milhões de euros, já apreendidos pela EPPO, recuperados para o orçamento nacional.
No caso da operação Admiral, já existe uma sentença condenatória em primeira instância.
"Este é o contributo da EPPO. Mas tudo o que alcançámos até agora baseou-se sobretudo no grande esforço da nossa equipa que trabalha aqui [em Portugal] na EPPO, em colaboração com as autoridades nacionais. E esse esforço tem de ser sustentado e tem de ter continuidade", disse a procuradora-geral europeia em entrevista à Lusa nas recém-inauguradas instalações da EPPO em Lisboa, que passou a ocupar gabinetes cedidos ao Ministério Público nas antigas instalações da Polícia Judiciária.
"Foi importante discutir como podemos melhorar isso e como podemos ter mais recursos alocados para lutar melhor contra o crime organizado, porque, no fim de contas, isto não é apenas sobre números, dinheiro que se perde e que fica nas mãos de criminosos. É também sobre segurança interna e sobre os efeitos económicos", acrescentou.
Nesse âmbito, ter polícias dedicadas à EPPO, algo que o procurador europeu português José Ranito já tinha sinalizado como prioridade, seria, do ponto de vista de Laura Kövesi, uma "situação em que todos ganham", porque permitiria trabalhar de forma mais eficiente, aumentando a recuperação de prejuízos e também o número de condenações.
Questionada se os meios alocados deveriam evoluir para que a EPPO tivesse uma polícia própria, de caráter transnacional, Kövesi não teve dúvidas: "Se me perguntar a mim, como procuradora, seria o cenário ideal".
"Temos a primeira procuradoria transnacional e precisamos de ter uma polícia transnacional. Não a temos. Terá de ser uma decisão tomada pelo legislador", disse.
Organismo contra a corrupção
A EPPO tem atualmente 24 Estados-membros, com a adesão em 2024 da Polónia e da Suécia.
O organismo, que funciona como um Ministério Público independente e altamente especializado, entrou em atividade em 1 de junho de 2021 e tem competência para investigar, instaurar ações penais, deduzir acusação e sustentá-la na instrução e no julgamento contra os autores das infrações penais lesivas dos interesses financeiros da União Europeia (por exemplo, fraude, corrupção ou fraude transfronteiriça ao IVA superior a 10 milhões de euros).