Perante as revelações com base em atos de pirataria informática assumidos por Rui Pinto, desde o Football Leaks ao Luanda Leaks, inúmeros juristas vêm defendendo que nem a legislação nem a doutrina dos "frutos da árvore venenosa" permitem à justiça o uso de documentação obtida de forma ilícita. Porém, a verdade é que até banqueiros portugueses foram já condenados em processos abertos com documentação obtida por métodos proibidos.
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No final de 2007, o comendador José Berardo denunciou à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) e ao Banco de Portugal (BdP) um esquema em que o BCP emprestava dinheiro a 17 sociedades offshore para estas comprarem ações do banco e, assim, valorizarem e manipularem o mercado. A denúncia do acionista do BCP, que apontava para créditos e para a ocultação de prejuízos de centenas de milhões de euros, era acompanhada e suportada por documentos obtidos por violação do segredo bancário. Mas o BdP, a CMVM e o Ministério Público (MP) não deixaram de atuar.
Para contornar o problema, os supervisores foram pedindo documentação ao próprio BCP, ainda antes de abrirem processo de contraordenação e invocando simplesmente o exercício das suas funções legais de supervisão. Depois, a documentação seria carreada para o MP, que também recebera a denúncia de Berardo, segundo recorda fonte ligada à investigação, e decidira abrir um inquérito-crime, em que os ex-administradores do BCP Jardim Gonçalves, Filipe Pinhal e António Rodrigues seriam acusados de manipulação de mercado e falsificação.
Advogados contra
Quando, há uma semana, Rui Pinto confessou ser a fonte do Luanda Leaks, o novo bastonário dos advogados, Luís Menezes Leitão, foi uma das vozes a defender que eram nulas as provas ali apresentadas e todas as outras que viessem a ser obtidas em sequência, por aplicação da doutrina dos frutos da "árvore envenenada".
"Se existe, no início da investigação, alguma intromissão abusiva, as provas são todas nulas, mesmo que recolhidas a partir daí", sustentou o bastonário na TSF, invocando a norma constitucional que considera nulas "todas as provas" obtidas mediante "abusiva intromissão" na correspondência ou nas telecomunicações.
Contaminação rejeitada
No caso BCP, aquela tese foi apresentada por vários arguidos, tanto em recursos contra a condenação nos processos de contraordenação, como nos interpostos no processo-crime, após Jardim Gonçalves, Filipe Pinhal e António Rodrigues apanharem penas de prisão de dois anos, suspensas, por manipulação de mercado.
Mas a tese de que a prova inicial tinha contaminado tudo o resto seria rejeitada em ambas as jurisdições. Na criminal, em 2015, a Relação de Lisboa concluiu que "a doutrina dos "frutos da árvore venenosa" não tem o sentido de um forçoso e inevitável "efeito dominó" que arraste, forçosamente, em cascata, todas as provas (...), antes abrindo um amplo espaço à ponderação das situações concretas".
"Mesmo admitindo que os documentos, com base nos quais a autoridade administrativa iniciou o processo, tenham chegado à mão de quem os enviou a essa autoridade, por força de um ato ilícito de outrem, tal não impedia a autoridade administrativa de desencadear averiguações e instruir o processo", acrescentou, argumentando que o processo-crime beneficiou da documentação dos processos de contraordenação mas era autónomo.
Rui Pinto tem-se queixado do desinteresse do MP e da Judiciária pelas denúncias, em 2017 e 2018, e pelos "indícios criminais" no Football Leaks e no Luanda Leaks. A procuradora-geral da República, Lucília Gago, nada tem esclarecido.
Líder da CMVM admite pedir informação
A presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), Gabriela Figueiredo Dias, admite pedir ao Consórcio Internacional de Jornalistas documentação que este recebeu do pirata informático Rui Pinto e que tem dado corpo ao Luanda Leaks. A presidente da CMVM admitiu aquele interesse em entrevista concedida à TSF e ao Dinheiro Vivo, suplemento do JN, no último sábado. "Pedir os 715 mil documentos não seria razoável. Mas nunca está excluída a possibilidade de pedirmos informação segmentada, de procurarmos essa informação onde ela existir", respondeu Gabriela Figueiredo Dias, pelo interesse agora suscitado pelos negócios da empresária angolana Isabel dos Santos em Portugal. A presidente da CMVM, que é jurista (e filha do penalista Jorge Figueiredo Dias), não se pronunciou diretamente sobre o facto de estar em causa informação obtida de forma ilícita, mas disse: "Nós tratamos da realidade que nos cerca e que cabe na dimensão das nossas competências através da observação de tudo o que nos rodeia".