Acreditava que um vizinho lhe tinha furtado uma carrinha e, por ser um cabo da GNR aposentado, convenceu quatro militares no ativo a irem buscar Paulo Ribeiro, de 29 anos, a casa da avó e, sob o pretexto de que teria de ser identificado, levaram-no para o posto dos Carvalhos, em Vila Nova de Gaia.
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Aqui, puseram-no num quarto sem luz e nem sítio onde se sentar, onde o agrediram com violência, ao longo de nove horas, para que confessasse a autoria do alegado furto e a localização do veículo. Esta quinta-feira, os quatro militares no ativo foram condenados pelo crime de tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, em penas de prisão, suspensas, entre quatro anos e quatro anos e três meses. Outros cinco militares igualmente julgados, incluindo o reformado, foram absolvidos.
Na leitura da sentença, no Tribunal de São João Novo, no Porto, o juiz presidente, António Pedro, reconheceu que o trabalho dos militares “não é fácil” e que estes são “postos à prova todos os dias”. Mas considerou que o crime cometido pelos quatro condenados – Pedro Rabaça, Patrick Henriques, Nuno Borges e Leandro Silva – é “grave” e “mina a confiança que os cidadãos têm nas instituições”, em particular na GNR, “merecedora de todo o respeito”, vincou.
Ainda assim, o tribunal optou por suspender a execução das penas, porque já passaram quase seis anos desde os factos (25 de agosto de 2019) e os guardas, atualmente colocados noutros postos ou no Comando do Porto, tinham um registo criminal limpo.
Os arguidos terão de dividir entre si o pagamento de uma indemnização de quatro mil euros ao ofendido e ficarão proibidos de exercer funções na GNR durante um período de dois anos e três meses.
Juiz antevê “outras voltas”
Paulo Ribeiro foi alvo de agressões que lhe causaram hematomas, escoriações, inchaços e feridas na cabeça, no tronco e nos membros. Algumas lesões indicam que foi agredido com um objeto de forma cilíndrica.
Esta quinta-feira, o juiz António Pedro não explicou porque é que absolveu cinco guardas e condenou os outros quatro, mas admitiu, no final da sessão, que o processo ainda pode dar “outras voltas”, por o acórdão ser recorrível para o Tribunal da Relação do Porto.
Até agora, o caso já suscitou várias decisões contraditórias: o Ministério Público (MP) acusou os nove arguidos de tortura e sequestro; um juiz não pronunciou nenhum deles, em instrução requerida pelas defesas; e, após recurso do MP, a Relação pronunciou-os a todos para julgamento, concluindo que havia "uma alta probabilidade de futura condenação, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição" dos acusados.
Já nas alegações finais do julgamento no Tribunal de São João Novo, a procuradora do MP Susana Catarino pediu a condenação de todos os arguidos, ao passo que os advogados de defesa requereram a absolvição, por inexistência total de provas ou por aplicação do princípio "in dubio pro reo" (em caso de dúvida, decide-se a favor do réu).
A advogada Susana Mourão, que representa dois condenados, anunciou ao JN que vai recorrer do acórdão.
O que dizia a acusação
A procuradora do MP sustentava que José Miranda, recorrendo ao facto de ser um cabo já na reforma, convenceu os restantes arguidos a ajudarem-lhe na recuperação de um veículo que, alegadamente, lhe tinha sido furtado pelo seu vizinho.
Assim, dizia a acusação, no dia 25 de agosto de 2019, quatro elementos da GNR foram buscar o ofendido a casa da avó e, sob o pretexto de que teria de ser identificado, levaram-no para o posto dos Carvalhos, onde permaneceu durante nove horas, entre as 13 e as 22 horas.
Aqui, referia a procuradora, "começaram logo as irregularidades", uma vez que, "de acordo com o plano que todos tinham traçado", os guardas puseram o ofendido num local sem luz e sítio para se sentar, "onde se encontrava um amontoado de caixotes".
O MP sustentava que os arguidos "começaram a bater no ofendido para o forçar a confessar o furto e que, quando estes militares se ausentavam, "iam sendo substituídos por outros, que continuavam esta situação".
A magistrada argumentou que todos os guardas que estavam no posto "sabiam que as agressões estavam a decorrer ou tinham ocorrido". "Agrediram e mantiveram o ofendido no posto, deixando que outros também o fizessem, atuando, desta forma, uns por ação, outros por omissão", frisou, salientando que a seleção da sala não foi aleatória. "Foi escolhida a dedo, uma vez que, pelas características que tinha, provocaria, como provocou, no ofendido uma grande desorientação. E permitiu que este não identificasse quem o agrediu, em que momento".
O Ministério Público também não ficou com dúvidas de que Paulo Ribeiro foi agredido. "Existem elementos clínicos e, obviamente, não foram as [únicas] agressões [perpetradas] pelo arguido José Miranda a provocar as lesões que o ofendido apresentava ao final do dia", referiu, salientando que os militares "aceitaram usar a violência física e psicológica sobre o ofendido para o obrigar a falar".
Agressões confirmadas
Durante o julgamento, tal como o JN noticiou, três dos nove militares acusados confirmaram que houve agressões no interior do posto, mas cometidas apenas pelo cabo aposentado José Miranda, o único que ficou em silêncio durante todo o julgamento.
Pedro Rabaça, o primeiro guarda a falar ao coletivo de juízes, confirmou que “houve agressões” a soco no interior das instalações, que disse terem sido cometidas pelo GNR na reforma, mas negou que estas tenham ocorrido na “sala que não tinha qualquer iluminação natural”. Depôs também que aconselhou o ofendido a dizer a verdade sobre onde estaria a viatura, mas rejeitou que o tenha coagido.
Também os arguidos Ruben Rebelo e Jorge Neves alegaram que o ofendido foi agredido pelo militar aposentado.
Já os guardas Patrick Henriques, Leandro Silva, Nuno Borges, Fernando Castro e Bruno Oliveira, este dois últimos à data do Núcleo de Investigação Criminal, negaram ter praticado ou assistido a qualquer agressão e garantiram ser inocentes.
Ofendido não sabe quem o agrediu
Numa das sessões de julgamento, o ofendido chegou a dizer que foi insultado, ameaçado e agredido “várias vezes” no interior de duas salas, uma delas sem janela, e também no hall de entrada do posto. Disse que foi algemado a uma cadeira, agredido com uma mangueira e ameaçado com uma arma no interior do posto por vários militares. Não soube, no entanto, precisar quem foram os agressores.
Perante a insistência do presidente do coletivo de juízes, António Pedro, para que fizesse um esforço, a vítima apenas conseguiu caracterizar um guarda, que disse que era “careca” e estaria na casa dos “40 a 50 anos”, vestido à civil.
Paulo Ribeiro menorizou até as agressões cometidas por José Miranda, dizendo que as mais graves foram praticadas por outros guardas.