Investigação da GNR permitiu desmantelar grupo de stands que vendeu veículos em todo o país, fugindo ao Fisco. Ministério Público acusou principal arguido de 356 crimes.
Corpo do artigo
Montaram uma gigantesca burla na importação de carros, que consistia na redução da quilometragem, por vezes em mais de 100 mil quilómetros, para os valorizar e vender a particulares de todo o país, em stands. A importação também era "martelada", havia fuga ao pagamento de IVA e de IRC e as vendas não eram declaradas. A rede, liderada por dois casais, das zonas de Mafra e Torres Vedras, com a cumplicidade de três elementos de um centro de inspeção automóvel, um GNR, um despachante aduaneiro e empresários foi desmantelada pela GNR.
O Ministério Público (MP) de Sintra acusou-os agora de centenas de crimes de burla, falsificação de documento, abuso de poder, corrupção e fraude fiscal. O Estado reclama-lhes perto de 2,2 milhões de euros que terão lucrado com os esquemas, entre 2016 e 2020.
Só o líder, Rui Henriques, 37 anos, o único arguido atualmente em prisão preventiva, vai responder por 356 crimes e o seu sócio, Hugo Gomes, de 39 anos, está acusado de 286 crimes. Os dois donos de stands acusados, com a ajuda de um técnico, Ernesto Ferreira, conhecido pela alcunha de "Tira" terão manipulado a quilometragem de 170 veículos.
Comprador/importador
De acordo com a acusação do MP, baseada na investigação da Unidade de Ação Fiscal da GNR, a maioria dos carros eram importados da Alemanha e a rede trabalhava sobretudo com BMW, Renault e Peugeot.
As viaturas chegavam a Portugal em transportadoras - uma das quais também é arguida - sem qualquer matrícula, porque no país de origem a mesma já tinha sido cancelada, em consequência do processo de exportação definitiva do veículo. A lei obrigava-os a adquirir uma matrícula de exportação, assim como um seguro, mas nada disso era feito. A importação era, assim, feita na clandestinidade, sem que, oficialmente, fossem as empresas dos arguidos a comprá-los.
Os veículos só seriam legalizados depois de aparecer um comprador, que, sem o saber, iria constar formalmente da documentação como importador, através da falsificação de assinaturas nos documentos oficiais. A legalização dos carros diretamente feita em nome dos clientes finais permitia escapar aos impostos e, assim, os arguidos conseguiam praticar preços muito mais atrativos do que os concorrentes.
Matrículas falsas
Os veículos chegavam aos stands da Enzo Car e Carsline Sport, situados entre Mafra e Torres Vedras, e ali era colocada uma matrícula estrangeira fictícia, para poderem circular pelo menos até ao centro de inspeção onde trabalhavam os cúmplices e para poderem chegar à mãos de "Tira". Quanto mais quilómetros tiravam, mais o veículo valorizava e "Tira" tinha equipamento com tecnologia de ponta para o fazer. Com dois módulos eletrónicos, conhecidos por Enigma e Abrites, fazia o interface entre um computador e os sistemas eletrónicos do veículo.
Depois, os carros seguiam para o centro de inspeções Controlauto, em Valverde, Torres Vedras, onde o diretor técnico e responsável, Nuno Henriques, e dois outros inspetores fechavam os olhos às irregularidades e validavam a atribuição da matrícula portuguesa.
Os carros, sem matrícula de importação e com a vigarice dos quilómetros tornada "legal", eram postos à venda como uma pechincha, proporcionando à rede milhões de euros de lucro.
Pormenores
Retoma martelada
Também nos carros que os stands retomavam aos clientes que adquiriam veículos importados, os indivíduos retiravam quilómetros. Um Citröen, com 295 mil quilómetros, sem valor comercial, foi revendido com 160 mil quilómetros, por três mil euros.
Separação
Os dois sócios Rui e Hugo separaram-se nos negócios a partir de 2017. Mas ambos continuaram o esquema numa lógica de cada um por si.
Transportadora
Uma empresária dona de uma transportadora de Bragança, que trazia os carros da Alemanha para a rede, também foi acusada. Terá passado faturas em nome dos clientes finais, bem sabendo que eram os casais que importavam os carros.
Estatísticas
2,4 milhões de carros
Um estudo oficial e recente da União Europeia estima que, dos cerca de 2,4 milhões de viaturas usadas comercializadas entre estados-membros, 30% a 50% tinham a quilometragem reduzida através de adulteração.
8 mil euros por mês
Só com a redução fraudulenta de quilómetros nos veículos, o principal arguido obteve um rendimento médio mensal de oito mil euros. Com as fraudes na importação e ao Fisco os lucros atingiram milhões ao longo dos anos.