O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) suspendeu, por um período de quatro anos, a execução da pena de três anos de prisão efetiva aplicada em janeiro, pelo Tribunal de Sintra, a uma jovem que, em 2019, autorizou a mutilação genital da filha, à data com um ano e meio de idade. O caso foi o primeiro a chegar a julgamento em Portugal.
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No acórdão, proferido esta semana, as juízas desembargadoras Conceição Gonçalves e Maria Elisa Marques defendem que a arguida, mãe solteira e então com 19 anos, "fez apenas o que era anseio da sua família", à qual não teria capacidade para se impor. As magistradas sublinham, ainda, que mandar a jovem, sem antecedentes criminais, para a cadeia "não deixaria de representar um novo castigo para a sua filha de tenra idade, já por si fragilizada pelo sofrimento que lhe foi infligido, e a precisar da mãe para o seu crescimento".
Ao JN, o advogado da arguida, Jorge Gomes da Silva, mostrou-se "satisfeito" com a decisão do TRL.
centro de saúde detetou
O caso remonta ao primeiro trimestre de 2019, quando R.D., residente na Amadora e natural da Guiné-Bissau, consentiu que a filha fosse cortada na zona genital durante uma estadia de três meses no país natal.
A mutilação foi detetada num centro de saúde após o regresso a Portugal. A menina foi transportada à unidade de saúde pela própria mãe, que, então, atribuiu a inflamação na zona genital da bebé a uma irritação causada pela fralda e o calor sentido na Guiné-Bissau.
Durante o julgamento em Sintra, a mulher, também mutilada na infância, negara a prática do crime, mas o tribunal reconheceu apenas que não fora R.D. a realizar o corte na filha. Sustentou, em contrapartida, que arguida se deslocara ao país natal para que a criança fosse mutilada e que, por isso, o crime fora "premeditado".
A falta de "arrependimento" e o facto de, como mãe, R.D. ter o dever de proteger a filha, foram outros dos argumentos invocados pelo Tribunal de Sintra para aplicar prisão efetiva à jovem. Na leitura do acórdão, o presidente do coletivo de juízes, Paulo Almeida Cunha, admitiu, ainda, que a pena era também uma forma "de proteger todas as outras crianças do sexo feminino".
atender à personalidade
No acórdão datado de quarta-feira, Conceição Gonçalves e Maria Elisa Marques concordam que as "exigências de prevenção geral são elevadas" atendendo à frequência da prática em causa (ler ficha). Mas ressalvam que importa ter em conta a "personalidade" e as "condições de vida" de R.D., bem como ao facto de esta viver com a "filha ainda criança".
As juízas desembargadoras optaram, assim, por suspender a execução da pena de três anos de prisão, cuja duração consideraram "justa e equilibrada". Poderia ter ido até 10 anos.
"Ficaram claras quais as consequências"
No recurso, o advogado da jovem alegara que a existência de uma condenação foi suficiente para prevenir a mutilação genital feminina. "Para todas aquelas mães ou jovens que ainda poderiam ter subjacentes quaisquer intenções ou pretensões, ficaram claras quais as consequências penais", frisou Jorge Gomes da Silva. O causídico recuperou ainda uma entrevista, em fevereiro, da secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, na qual Rosa Monteiro defendeu que a intervenção contra aquele fenómeno tem de acontecer num quadro de uma abordagem "direta, sensível" e não no de uma "visão judicialista e criminalizadora".
Centenas de casos
As autoridades nacionais registaram, entre 2014 e o final de 2020, mais de 400 casos de mutilação genital feminina, 101 dos quais no ano passado. A maioria foi praticada no passado e fora de Portugal.
Crime desde 2015
A mutilação genital feminina, frequentemente considerada um rito de iniciação da mulher, é crime em Portugal desde 2015. Até 2020, tinham sido abertos 12 inquéritos. Nove acabaram em arquivamento.
Milhões de vítimas
Estima-se que existam mais de 200 milhões de vítimas em todo o mundo. Pelo menos sete mil residirão em Portugal.