O antigo presidente do Conselho de Administração do GES, António Ricciardi, assegurou, ao ser inquirido pelo Ministério Público, que Ricardo Salgado "era, de facto, o único que sabia tudo" o que se passava no grupo. O depoimento remonta a 2015 e foi reproduzido esta quinta-feira de manhã no julgamento do caso BES.
Corpo do artigo
O tio do ex-banqueiro morreu em 2022, aos 102 anos, e surge no processo na condição de testemunha.
Em outubro de 2015, António Ricciardi explicou que, embora a sua assinatura surja em inúmeros documentos do grupo, desconhecia a generalidade das decisões tomadas sobre a gestão do Grupo Espírito Santo (GES). A documentação era-lhe apresentado por José Castella, então supervisor financeiro do GES, falecido cinco meses de o Ministério Público ter, em julho de 2020, deduzido a acusação.
"O Dr. José Castella era um funcionário do GES, com a confiança de toda a gente, e a maior parte das vezes, aparecia-me com documentos para serem assinados. A maior parte das vezes, já estariam assinados pelo Manuel Fernando [Espírito Santo, líder de outro dos cinco ramos da família], e eu punha a assinatura, sem de facto ter participado na decisão", referiu há nove anos, sublinhando que era sua convicção que o supervisor financeiro recebia "instruções" de Ricardo Salgado.
"Eu acho que ele tinha de facto instruções do Dr. Ricardo Salgado, preparava as coisas de acordo com essas instruções e recolhia as assinaturas da Espírito Santo International [ESI]", afirmou. A ESI era a holding criada para controlar as áreas financeira e não financeira do GES e que era detida pela Espírito Santo Control, esta última participada pelos cinco ramos da família Espírito Santo.
Na perspetiva do Ministério Público, a ESI, falida desde 2009 mas com as contas sistematicamente adulteradas para mascarar a sua situação, foi uma das entidades no centro do esquema montado por Ricardo Salgado para delapidar, subornando os próprios funcionários e com recurso a operações fraudulentas e a uma rede de offshores, o património do Banco Espírito Santo (BES) e dos seus clientes.
"Não me lembro de ter assinado"
"Eu soube o que tinha acontecido às contas pela primeira vez em novembro de 2013, numa reunião do Conselho Superior [do GES]. Tinha aparecido um buraco, já era de um bilião", assegurou aos procuradores do Ministério Público, em 2015, António Ricciardi, então com 96 anos. "A partir dessa reunião, falámos e procurámos ver o que havia a fazer, para procurar sanear a questão. Mas, entretanto, houve a intervenção do Banco de Portugal, que fez sair os membros da família Espírito Santo", acrescentou.
Na inquirição de cerca de hora e meia, o tio de Ricardo Salgado mostrou-se ainda surpreendido com a existência da Espírito Santo Enterprises (ESE), vulgarmente chamado de "saco azul" do GES, e que terá sido usado para pagar "prémios" a funcionários do BES, incluindo, em um milhão de euros, Amílcar Morais Pires, o braço-direito do ex-banqueiro. O Ministério Público acredita que foram "luvas" internas e a assinatura de António Ricciardi surgiu, pelo menos, em algumas das ordens para o pagamento.
"Acho extraordinário, porque não me lembro disso, não considero adequado. Claro que o Amílcar [Morais] Pires era um dos homens de que o Ricardo [Salgado] se servia, mas não me lembro de ter assinado esse documento", reagiu. Questionado sobre o que queria dizer com pessoas de quem o ex-banqueiro se servia, António Ricciardi respondeu que era "evidente" que o antigo presidente do BES "não fez a gestão do grupo sozinho". "Tinha um grupo de pessoas que trabalhavam para ele. Essas pessoas sabiam de umas coisas e não sabiam de outras. Quem sabia de tudo, era ele [Ricardo Salgado]", explicitou.
O julgamento prossegue esta quinta-feira à tarde, com a inquirição presencial de José Maria Ricciardi, filho de António Ricciardi, e que, em 2013, foi o único a recusar-se a dar um voto de confiança ao primo Ricardo Salgado para que este avançasse com um programa de reestruturação do GES.