Sigilo de advogados atrasa instrução de processo sobre obras suspeitas de Moita Flores
Francisco Moita Flores, antigo autarca de Santarém, foi acusado de cinco crimes, em 2019, por atos praticados dez anos antes. Instrução do processo arrasta-se há mais de um ano.
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O pedido de levantamento do sigilo profissional de dois advogados, para que testemunhem sobre um diferendo entre uma construtora e a Câmara Municipal de Santarém (CMS), está a atrasar a instrução do processo em que o ex-autarca Francisco Moita Flores foi acusado, em 2019, de três crimes de prevaricação e dois de participação económica em negócio. A instrução, em que Moita Flores refuta os ilícitos (ler texto ao lado) e tenta evitar o julgamento, dura há mais de um ano.
O caso remonta a 2009 e abrange quatro empreitadas entregues, por ajuste direto, à construtora A. Machado & Filhos, entretanto insolvente. Segundo defende o Ministério Público (MP) no processo, consultado pelo JN, só duas das empreitadas incluíram procedimentos contratuais: a demolição de estruturas num largo da cidade; e o fornecimento de portas e janelas para edifícios da antiga Escola Prática de Cavalaria (EPC).
Outra das empreitadas decorre da decisão de instalar, em edifício da EPC, um serviço de atendimento à Gripe A. Esta obra foi classificada como urgente e atribuída à mesma empresa. Só que, mais tarde, o serviço foi considerado desnecessário e as obras passaram a ser de requalificação, para acolhimento de um museu e fundação desejados por Moita Flores.
Para o MP, o novo plano não tinha suporte no ajuste direto celebrado a pretexto da Gripe A e devia ser objeto de novo procedimento. A acusação sustenta que os trabalhos foram acompanhados, sob instruções do autarca, por António Duarte, então diretor municipal e também acusado. Duarte terá ainda fiscalizado, novamente a mando de Moita Flores e à revelia dos serviços jurídicos e técnicos municipais, a quarta empreitada sob suspeita, também na antiga EPC.
Créditos de meio milhão
Paralelamente, segundo a acusação, a empresa celebrou com um banco um acordo que, na prática, obrigaria o Município a restituir à instituição financeira 500 mil euros adiantados por esta à construtora. Moita Flores terá confirmado as respetivas faturas, que não correspondiam a serviços prestados, acusa o MP, referindo que a empresa recebeu ainda do banco 96 670 euros pelas duas primeiras empreitadas.
Apesar disso, em 2012, a construtora intentou ação judicial exigindo 1,6 milhões de euros por trabalhos não pagos. Dois anos depois, o tribunal deu razão à empresa. Ricardo Gonçalves já assumira a liderança do executivo e, meses depois, participaria ao MP os factos que culminaram na acusação.
Duas semanas antes de, a 29 de outubro de 2012, renunciar ao mandato para se candidatar à Câmara de Oeiras, Moita Flores ainda ordenou que fosse constituída uma comissão arbitral para solucionar o diferendo, mas esta nunca chegou a iniciar funções. É para explicar isso que o ex-autarca quer a inquirição dos advogados da empresa e da Autarquia na instrução. Um deles foi autorizado pela Ordem a quebrar o sigilo profissional em julho de 2020, o outro vira o pedido ser rejeitado em novembro de 2019. O arguido discordou e o juiz de instrução aguarda agora que o Tribunal Constitucional se pronuncie.
"Ato de vingança"
No Requerimento de Abertura de Instrução, Moita Flores alega que o que está em causa é "um ato de vingança" do atual presidente da Câmara Municipal de Santarém, após o Município ter sido condenado a pagar, em 2014, mais de 1,6 milhões de euros à construtora. Para o antigo autarca, é o comportamento de Ricardo Gonçalves, seu ex-vereador, que deve ser investigado. Este garantiu, em 2019, ter participado os factos "em defesa do interesse público". Já sobre os atos que lhe são atribuídos, Moita Flores admite que possa ter cometidos "lapsos e erros", mas garante que agiu "com a convicção de que atuava dentro da lei" e de que os serviços municipais garantiriam o cumprimento das regras. E frisa que saiu da Autarquia acreditando que a ação em tribunal "seria resolvida de forma conveniente" para o Município.
Uma "efabulação"
António Duarte, acusado em coautoria com Moita Flores de três crimes de prevaricação de titular de cargo político, sustenta, por sua vez, "que agiu sempre no estrito cumprimento das suas funções, no respeito absoluto pela lei e orientações superiores". Alega, ainda, que só tomou conhecimento da celebração dos contratos alegadamente ilegais quando assumiu a supervisão das obras. A acusação é uma "efabulação", diz.
Corrupção em novo processo
O MP acredita que Moita Flores atuou para "colher benefício para a sua imagem política", realizando uma "obra emblemática". Não há neste processo indícios de a construtora ter pago qualquer contrapartida. Mas, já neste ano de 2021, Moita Flores foi acusado, num outro processo, de ter sido subornado em 300 mil euros por outra construtora, no âmbito da obra de um parque de estacionamento. Também vai pedir a abertura da instrução deste caso para tentar evitar o julgamento.