Soldado simula furto de cartão para ser expulso da Força Aérea e fugir às praxes
Um dos dois soldados que terão sido alvo de praxes violentas por parte de dez militares da Força Aérea Portuguesa, entre 2018 e 2019, na Base Aérea N.º 5, em Monte Real (Leiria), afirmou esta terça-feira em tribunal que simulou o furto de um cartão bancário de um camarada com o intuito de ser expulso da instituição.
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O objetivo era evitar o pagamento de uma indemnização a que estaria sujeito no caso de cessar o contrato por sua iniciativa, explicou Alexander P. na quarta sessão de julgamento, que decorreu no Tribunal de São João Novo, no Porto, onde começou hoje a ser ouvido. "Furtei um cartão de crédito de um camarada de curso para não ter de pagar indemnização. Foi tudo feito às claras (...) e fui expulso, graças a Deus", disse, explicando que, após o sucedido, se deslocou a uma caixa multibanco "para ser visto pelas câmaras" a levantar dinheiro.
Indagado pela presidente do coletivo de juízes, Maria Isabel Teixeira, sobre por que razão não abandonou a Força Aérea se não gostava de lá estar devido às praxes de que era, alegadamente, alvo, o ofendido respondeu que, depois do que sofreu, "não estava disposto a dar dinheiro" à instituição para se vir embora.
Alexander P. revelou ainda que só denunciou o que se teria passado nos "cerca de seis a oito meses" em que lá esteve quando tomou conhecimento de que outro camarada - António G., também ofendido neste processo e que já prestou depoimento nas duas sessões anteriores - se teria tentado matar. "Foi quando me vieram interpelar [sobre esse assunto] que acabei por contar", contou.
Na sessão desta terça-feira, o ofendido foi instado a detalhar quais as ações concretas que cada um dos dez arguidos - expulsos da instituição militar, em 2020, e acusados pelo Ministério Público por dois crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física e dois crimes de abuso de autoridade por outras ofensas - terão concretizado.
Alexander P. relatou então que o arguido Miguel Sequera o chamou a dada altura e, ao mesmo tempo que segurava o seu órgão genital na mão, perguntou-lhe se queria fazer “uma festinha, mamar”. "Tive que olhar para um genital. Óbvio que não queria [mamar]", explicou, classificando este episódio de "humilhante" e como "assédio sexual". Questionado por um dos advogados presentes se foi o único pénis que viu durante o período em que esteve na Força Aérea, disse: "Contra a minha vontade, sim. Uma coisa é estarmos no banho, outra é estarmos no serviço".
Durante o seu depoimento, o ofendido confirmou também que foi obrigado a jogar o “jogo da poia”, que consistia em transportar (entre o edifício do Comando e o alojamento onde se encontravam) a maior quantidade de dejetos de canídeos em menor tempo, e que o prémio para o vencedor era ter direito a uma noite de sono tranquila.
No seu depoimento, Alexander P. referiu que comeu ração de cão das gamelas e bebeu líquidos dos bebedouros para canídeos na presença de outros militares ("Não era só provar, era comer e beber") e que, a certa altura, entrou para uma gaiola de transporte de cães, colocada na viatura afeta ao pessoal de serviço, a fim de ser transportado, fechado no interior, pela periferia. "Estava preso na gaiola dos cães enquanto faziam rally no terreno da unidade", disse. Sobre este assunto, o ofendido relatou que também chegou a comportar-se como um canídeo. "Tinha de agir como cão, punham-me uma corda ao pescoço e obrigavam-me a estar debaixo da secretária", explicou.
O ofendido contou também que o arguido André Alves chegou-lhe, mais do que uma vez, a apontar uma arma à cabeça, "sem segurança e municiada" na Porta de Armas. Questionado pela juíza como sabia que estava "pronta a disparar", como afirmara momentos antes, Alexander P. respondeu que os procedimentos haviam sido efetuados à sua frente. O arguido, numa sessão anterior, negou que isto tivesse acontecido.
A dada altura, a juíza-presidente pergunta ao ofendido se "alguma vez" pensou em apresentar queixa. "Pensei", respondeu-lhe. "Porque não fez?", devolveu-lhe a questão. "Pensei que ia eventualmente acabar. Infelizmente não foi isso que aconteceu", lamentou o ofendido, dizendo que foi alvo de uma "lavagem cerebral" e que tinha receio de ser "posto de parte". A juíza interpela-o para dizer que ele "já não tinha ninguém com quem estar". "Mas eu tinha esperança [de que as coisas mudassem]", retorquiu.
No seu depoimento, o ofendido também referiu que o arguido Marco Pinto, que é atualmente agente da PSP, chegou a mandar-lhe a cabeça contra uma parede. "Depois, pediu-me desculpa", disse. E que o arguido Hélder Valentim agarrou-lhe pelos colarinhos e disse-lhe que lhe dava "porrada" por ele ("um maçarico") não se ter voluntariado a ir a uma cerimónia que ia decorrer na base.
A dada altura, o ofendido referiu ainda que os arguidos "sujavam o bar de propósito" para que ele tivesse de limpar e que tinha de engraxar "botas nos tempos livres". "Tinha os meus lençóis na sanita, fruta podre na cama. Chegaram a roubar-me comida", acrescentou.
A dada altura, o procurador do Ministério Público, Paulo Namora, pede-lhe para concretizar a atuação do arguido Cristiano Silva neste caso. Mas o ofendido não consegue atribuir-lhe nenhum ato violento. Já na última sessão, recorde-se, o ofendido António G. não pôs este arguido como um dos autores das praxes alegadamente violentas cometidas contra si, não se percebendo porque está então sentado no banco dos réus.
O Ministério Público refere que os dez arguidos, então com a especialidade de Polícia Aérea, consideravam que os dois ofendidos, António G. e Alexander P., apresentavam um nível de desempenho "abaixo do padrão" e, como tal, deviam ser sujeitos a um "processo de integração/ensinamento".