Na última década, só 6% dos casos de poluição e de danos contra a natureza foram julgados. Lei é vaga e muitas sentenças não fazem avaliação correta, diz IGAMAOT.
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Na última década, as autoridades policiais registaram cerca de 82 mil crimes ambientais, sobretudo incêndios florestais, danos contra a natureza e poluição. Mas, embora o Código Penal preveja punições pesadas, incluindo penas de prisão que podem ir dos três aos 12 anos, apenas uma ínfima parte das situações chega à barra dos tribunais e não há memória de condenações a prisão efetiva em Portugal. O grosso das situações finda com a aplicação de multas e, quando chegam à justiça, não é raro que a penalização seja desagravada, com a redução da coima.
Entre 2010 e 2019, dos mais de 82 mil crimes denunciados, a fatia de leão é de incêndios rurais (80 595) e contam-se 1013 registos de danos contra a natureza e 558 por poluição. Porém, nos nove anos, só 1503 processos relacionados com aqueles três crimes foram julgados e findos nos tribunais de 1.ª instância. Se retirarmos os fogos florestais da equação (que valem mais de mil processos), a diferença é abissal: julgaram-se só 16 processos-crime por poluição e 82 por danos contra a natureza, envolvendo um total de 167 arguidos, o que corresponde a 6,2% dos crimes registados nesse período. Entre os arguidos, 108 foram condenados (94 por danos contra a natureza e 14 por poluição).
Nem ambientalistas nem o inspetor-geral da Agricultura, Mar, Ambiente e Ordenamento do Território (IGAMAOT), José Manuel Brito e Silva, têm memória da aplicação de penas de prisão efetiva por poluição e por danos contra a natureza, apesar de previstas no Código Penal. O crime de poluição pode dar até oito anos de cadeia, se colocar em perigo a vida humana. Os danos contra a natureza podem ser punidos com cinco anos de prisão.
Sanções reduzidas a multa
Brito e Silva faz reparos à forma como estes crimes surgem descritos no Código Penal. O inspector-geral reconhece que há uma "enorme diferença" entre a "perceção pública" do crime ambiental e "a forma como o mesmo está configurado" na lei. "Em matéria ambiental, a definição de crime apresenta-se eivada de conceitos vagos e indeterminados, dificilmente compagináveis com a certeza e a segurança inerentes à aplicação do direito penal, o que dificulta em muito a tarefa do Ministério Público e dos tribunais". Ou seja, a penalização é relegada para a Administração Pública e para as forças de segurança com a aplicação de multas à "quase totalidade das situações de violação, mesmo as mais danosas e merecedoras de sanção criminal".
Acresce que, da monitorização que a IGAMAOT faz às sentenças judiciais por crimes ambientais desde 2016, constata-se que, num "grande número dessas decisões, não houve por parte do "poder judicial uma correta apreensão da relevância e das consequências das questões submetidas à apreciação", frisa ao JN. O mesmo já tinha sido apontado pelo ministro do Ambiente em 2017.
Desde então, tem havido sessões de trabalho entre o IGAMAOT e a Procuradoria-Geral da República para "aprofundar a sensibilização dos magistrados do Ministério Público da realidade ambiental e dos riscos associados à incorreta apreciação e sancionamento dos incumprimentos da legislação". Esse trabalho, garante Brito e Silva, "está já a ter resultados muito positivos em algumas comarcas do país", mas ainda pesam a "especificidade" e a "falta de histórico das matérias do ambiente nos tribunais".
Ao longo dos nove anos, os dados do Ministério da Justiça denotam um crescimento, ainda que muito tímido, tanto dos registos pelas forças de segurança como dos processos julgados por crime de poluição e de danos contra a natureza.
Há enorme complacência em relação às penas
As associações ambientalistas Zero e Quercus estão de acordo: não há uma penalização de peso para quem comete crimes ambientais em Portugal. "Há uma enorme complacência em relação às penas aplicadas" nos poucos casos que chegam aos tribunais, sublinha Francisco Ferreira, da Zero. A aplicação de multas continua a ser a norma e "é, muitas vezes, insignificante para as empresas que prevaricam", garante Cármen Lima, da Quercus. Com tudo isto, o sentimento reinante é de impunidade, frisam.
O aumento das denúncias não se reflete nos processos judiciais e frustra os denunciantes. "O Código Penal prevê penas mais graves. O problema é aplicá-las. Não se pode ficar apenas pelas multas. Precisamos de passar para o próximo patamar. Isso teria um efeito dissuasor", argumenta Cármen Lima. A ambientalista está convicta de que a falta de uma "resposta célere" e de uma "verdadeira responsabilização de quem destrói o Ambiente" é "mau para as empresas que cumprem a lei", além de fomentar a "concorrência desleal".
Recolha de provas falha
Ao longo dos anos, a Zero tem acompanhado vários processos e cresce a certeza de que, à lentidão judicial, soma-se a "incapacidade de fiscalização", a deficiente recolha de provas e a "impreparação dos juízes na avaliação das causas". E o crime acaba por compensar.
Por exemplo, o fecho de fábricas recorrentemente poluentes por decisão judicial é quase uma impossibilidade. "Há uma sensibilidade exagerada de proteção a quem comete as infrações por razões sociais e económicas que é desproporcionada face ao impacto social e económico do crime".