Sacerdote que dirigia instituição, diretora e psicóloga demoraram 23 dias a comunicar caso à Justiça. Vítima internada em Casa de Acolhimento ligada à Igreja na Guarda já tinha sido abusada por tio.
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O tribunal da Guarda absolveu um padre que estava acusado de proteger dois adultos, um de 18 anos e outro de 22, que haviam abusado sexualmente, repetidas vezes, de um menino de 12 anos, no interior da Casa de Acolhimento Outeiro S. Miguel, na Guarda, que o sacerdote dirigia e onde os três estavam institucionalizados. A acusação do Ministério Público (MP) imputava crimes de "favorecimento" pessoal ao padre Ângelo Martins, mas também à diretora técnica, Carla Saldanha, e à psicóloga, Sílvia Pereira, por "procurarem encobrir" os abusadores que foram condenados, respetivamente, a quatro anos e a dois anos e meio de prisão, com penas suspensas, por crimes de abuso sexual de criança.
Segundo o MP e o juiz que pronunciou os arguidos, só quando os responsáveis da Casa do Outeiro se aperceberam de que Polícia Judiciária (PJ) soubera dos abusos, casualmente, na sequência de uma agressão à facada envolvendo internos da instituição e estava em campo, é que decidiram fazer a denúncia. Isto 23 dias depois de terem tido conhecimento dos crimes pela vítima, "Dinis" (nome fictício), verbalmente e por escrito, a 31 de maio do ano passado. Não o fizeram às autoridades policiais, como lhes era exigido, mas à CPCJ de Almeida.
No julgamento, que terminou em abril, os responsáveis alegaram que haviam seguido à risca o preceituado no livro "Linhas Orientadoras para Atuação em Casos de Indícios de Abuso Sexual de Crianças e Jovens", publicado em 2010 pela Casa Pia, e que desde então serve de bíblia para os procedimentos a adotar em caso de abusos sobre menores institucionalizados.
No entanto, tendo em conta aquelas orientações - feitas com colaboração de especialistas e da PJ - o que o padre Ângelo, a diretora técnica e a psicóloga fizeram afasta-os bastante do ali fixado.
Desde logo porque a denúncia não terá "convencido" os responsáveis, que alegaram, em tribunal, que "Dinis" chegara à Casa do Outeiro com fama de ter "predisposição" para "mentir". Optaram por vigiar o menino - "nunca o deixarem só" -, ao mesmo tempo que decidiram, eles próprios, investigar, contrariando o livro da Casa Pia. "Os membros das CPCJ e os profissionais das instituições com competências em matéria de infância e juventude deverão desde o início abster-se de conduzir qualquer investigação em caso de suspeita de uma situação de abuso sexual", refere o documento. E fizeram-no logo no dia a seguir à denúncia confrontando os acusados.
Exames imediatos
Por outro lado, segundo o manual, o relato de abusos feito diretamente pela vítima deve ser visto como "indício consistente", o que implicaria procedimentos que não foram tomados. Por exemplo, "se há indicação da eventual ocorrência de abuso sexual nos últimos três (3) dias, é fundamental que se realize um exame médico-legal imediato". O que era o caso, pois, segundo acórdão, os abusos aconteceram entre 26 e 29 de maio e o rapaz denunciou-os a 31.
Aparentemente, o padre e as técnicas não o entenderam assim e, durante o julgamento, os inspetores responsáveis pela investigação não foram chamados para depor em tribunal e explicar a sua avaliação, facto que fontes ligadas ao processo disseram "não entender".
No final, o tribunal considerou que "não ficou provado que os mesmos [responsáveis] tenham procurado impedir ou iludir a atividade probatória das autoridades policiais com a intenção de obstar a que os arguidos (...) fossem sujeitos à reação penal. Pelo contrário, decidiu que os três, "atuando com toda a parcimónia, protegeram a vítima de toda e qualquer agressão (...)" e que "após averiguações e alertados por alguns alaridos no seio da instituição, os coarguidos, no momento certo, entenderam atuar, comunicando o caso às autoridades judiciárias e à CPJC". Isto 23 dias depois da denúncia da vítima.
Padre diz que pensava que estava a seguir o guia da Casa Pia
Contactado pelo JN, o padre Ângelo "confessou" que seguiu os conselhos da "doutora Carla Saldanha", pensando estar a proceder de acordo com o "guia" da Casa Pia. Repetiu que o seu interesse maior foi proteger o menino, ordenando que nunca fosse deixado só e afastando dele os alegados abusadores. E que tentou confirmar a veracidade da denúncia.
O sacerdote, que cessou o trabalho na instituição em setembro, disse também desconhecer que nem ele nem ninguém da instituição tinham competência para "investigar" o relato da vítima, designadamente ouvindo os abusadores. "Salientou que a partir do julgamento, onde percebeu que errara, mesmo uma simples bofetada" é para comunicar "imediatamente ao MP ou à PJ".