Antigo porta-voz da Polícia Judiciária Militar e arguido no caso Tancos queixou-se de devassa da vida privada pela TVI. MP arquivou e Relação disse que não protegeu os filhos ao expô-los.
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O ex-porta-voz da Polícia Judiciária Militar (PJM) Vasco Brazão processou o jornalista da TVI Luís Varela de Almeida por ter divulgado, numa reportagem sobre o caso de Tancos, a fotografia de capa do seu perfil de Facebook onde o major surge com a mulher e os filhos, alguns deles menores. Na peça jornalística, exibida em outubro de 2018 no "Jornal da Uma", o destaque eram os comentários tecidos pelo militar que tinha escrito que a operação de encobrimento em redor da recuperação das armas foi montada sem o conhecimento do Exército. Mas o motivo da queixa do major viria a ser a exibição, como pano de fundo, da fotografia de família.
O Ministério Público (MP) arquivou o caso e o Tribunal da Relação também não deu razão ao militar considerando que este perdera o controlo sobre o uso da imagem ao torná-la pública no Facebook. A questão sobre a reserva da intimidade da vida privada e da proteção dos dados pessoais no ciberespaço não é nova e quando chega à barra dos tribunais não reúne unanimidade jurisprudencial, com os magistrados a divergir quanto à interpretação sobre o direito à imagem.
Sem autorização
Vasco Brazão não gostou de ver os familiares associados ao assalto aos paióis e levou o caso a tribunal. Alegava, entre outras razões, que não tinham autorizado a divulgação da fotografia e que os familiares tinham ficado expostos à "curiosidade e maledicência públicas" numa altura em que o processo era mediático.
O MP não deu seguimento à queixa e arquivou o inquérito. No entanto, o major requereu a abertura da instrução, tendo a juíza entendido não imputar ao jornalista os crimes de que era acusado. Argumentou a magistrada que Brazão podia ter escolhido qualquer outra fotografia, mas que não o fez, optando por revelar no Facebook e de forma pública uma em que aparecem os filhos menores.
Inconformados, o major e a família interpuseram recurso, exigindo que o jornalista fosse então pronunciado pelo crime de gravações e fotografias ilícitas agravado. Consideraram que seria de presumir que "não autorizariam a divulgação" de uma fotografia familiar numa reportagem televisiva em que um dos membros surge associado a uma "atividade alegadamente criminosa e de grande impacto público".
No entanto, as desembargadoras consideraram o mesmo improcedente. No acórdão, de 8 de fevereiro, as juízas Maria Margarida Almeida e Maria da Graça Santos Silva afirmam que o dever de um pai é proteger a imagem dos filhos em termos públicos. "Sucede, todavia, que não foi esse o caminho tomado", notam. As magistradas defenderam ainda que a utilização de uma fotografia, desde que lícita, não é proibida por lei: "Ao torná-la acessível ao público em geral, o dono da imagem perde o controlo sobre o seu uso e não se pode opor à sua divulgação, desde que os fins que presidem à mesma não se mostrem ilícitos ou ilegítimos".
A decisão foi tomada com voto de vencida da desembargadora Ana Costa Paramés, para quem o facto de a fotografia poder ser livremente visualizada através do Facebook não dava ao arguido legitimidade para que a utilizasse sem consentimento: "Estamos de acordo que as redes sociais constituem espaços abertos ao público. O que já não podemos concordar é que essa possibilidade de visualização das fotografias comporte qualquer consentimento para a utilização por terceiros dessas fotografias sem o consentimento do visado, isto é, que qualquer pessoa se possa apoderar de uma fotografia pessoal e utilizá-la para os fins que lhe aprouver, desde que os mesmos sejam lícitos".
Pormenores
Cinco anos de prisão
O Tribunal da Relação de Évora anulou em fevereiro o acórdão do julgamento do processo de Tancos, que, em janeiro de 2022, tinha condenado 11 dos 23 arguidos. Na altura, o major Vasco Brazão foi condenado pela prática de um crime de favorecimento pessoal praticado por funcionário e um crime de falsificação ou contrafação de documentos, num cúmulo jurídico de cinco anos, tendo a execução da pena sido suspensa por igual período.
Diretor arguido
O à época diretor de informação da TVI, Sérgio Figueiredo, chegou a ser constituído arguido. No entanto, não se provou que autorizou a divulgação da reportagem.
Caras distorcidas
Além de ser exibida no "Jornal da Uma", a reportagem foi transmitida no "Jornal das 8", onde a fotografia surge por duas vezes, numa versão mais curta da peça, e já com as caras da família distorcidas. As desembargadoras consideraram que, desde o início, todas as pessoas presentes na foto deviam ter sido desfocadas. "Tanto devia que, na segunda publicação da notícia, tal foi feito. Mas uma crítica em sede moral ou ética nem sempre corresponde ou configura um ilícito criminal."
Mudança de ramo
Vasco Brazão é atualmente agente associado da rede imobiliária Remax.
Peritos divididos
Não é crime mas devia dar coima
Tiago Cabanas Alves é advogado, especialista em proteção de dados, e considera "lamentável" que, no acórdão ou mesmo no voto de vencido, não haja uma única referência ao Regulamento Geral de Proteção de Dados. "Os tribunais portugueses têm alguma relutância em perceber que a imagem é um dado pessoal por uma razão: permite a identificação de uma pessoa, que é, se calhar, o dado maior de identificação", afirma. Para o causídico, "o tribunal deveria ter a capacidade de dizer que não seria devassa da vida privada, nos termos do Código Penal, mas que constituía, pelo menos, uma contraordenação", sujeita a coima.
Cuidado com a pegada digital
Para a conselheira familiar Cristiane Miranda, do projeto "Agarrados à Net", que se dedica à prevenção dos impactos negativos da pegada digital, a perceção é de que os pais expõem cada vez mais cedo os filhos. "Ainda não nasceram e as imagens das ecografias já estão a ser publicadas nas redes sociais. Antigamente dava-se a notícia aos familiares e amigos mais próximos, hoje divulga-se ao mundo", nota. E vai mais longe: "Muitos ganham dinheiro expondo os filhos em situações constrangedoras, ridículas e até humilhantes. Prejudica muito a autoestima e a autoconfianças dos filhos e, mais tarde, pode fazer com que a criança sofra de bullying e cyberbullying".
Exposição online indesejada
Tito de Morais é fundador do projeto MiudosSegurosNa.Net. Alerta para o facto de que a partilha pelos progenitores de fotos, além de poder violar o direito de imagem e o direito à privacidade, pode ser danosa em termos reputacionais. "A nível europeu, já foi consagrado o direito ao esquecimento, exatamente para diminuir os impactos negativos da exposição online indesejada. A tendência é para uma maior sensibilização para este tipo de questões". No entanto, contrapõe o especialista, "a verdade é que continua a ser muito mais fácil remover uma imagem que viole direitos de autor do que imagens cuja remoção seja pedida por outros pretextos".
Crianças à mercê dos predadores
O inspetor da Polícia Judiciária Ricardo Vieira investiga crimes contra crianças nas redes sociais e alerta para o perigo sério e real da divulgação de fotografias e informações de menores. "Temos de pensar que o agressor pode ser um indivíduo que está a cinco ou a dez mil quilómetros de distância, mas também à proximidade da velocidade da Internet". Recorda que, "a par das plataformas de jogo online, as redes sociais são a porta de entrada para predadores sexuais". "Ali têm à disposição um número infinito de crianças que se estão a expor por vontade própria ou de terceiros", avisa.
Menos exposição, mais monitorização
Precisamente para evitar que essa divulgação indiscriminada de fotografias constitua uma ameaça a direitos basilares, como a preservação da imagem ou da reserva da vida privada, é que a psicóloga Isabel Castro defende um "equilibro" na forma como se olha para as tecnologias. "Se por um lado, devemos educar para a sua correta utilização, por outro, não podemos esquecer de monitorizar o acesso aos meios digitais disponíveis", finaliza.
Outro caso
Citando extratos do acórdão sobre o caso do major Brazão e da TVI, a Relação de Lisboa absolveu, em março, a mãe de uma menor do crime de fotografias ilícitas, concluindo também que, "ao torná-la acessível ao público em geral o dono da imagem perde o controlo sobre o seu uso e não se pode opor à sua divulgação", desde que para fins lícitos e legítimos.
Para mostrar que a atual companheira do ex-marido era uma má influência para a filha, a mãe da criança foi ao perfil de Facebook da madrasta e retirou fotografias onde esta teria, alegadamente, comportamentos censuráveis que depois juntou a um processo de alteração de responsabilidades parentais. Com as fotos pretendia mostrar o seu desagrado com as "publicações da assistente na rede social Facebook, que evidenciavam uma postura pública contrastante com as orientações educativas que a ora arguida dava à sua filha menor, já que esta desde o convívio com a assistente passou a ter uma linguagem e maneirismos impróprios". Argumentou que a junção das fotos foi a única forma que encontrou para descrever a postura da madrasta e como esta se apresentava.
A mulher acabou acusada pelo crime de fotografias ilícitas, mas foi absolvida duas vezes. Para as juízas da Relação, a queixosa é que tornou públicas as imagens. "Foram tornadas públicas pela assistente, na sua página do Facebook e, a partir desse momento, a sua utilização, desde que lícita, não é proibida por lei. Tanto foi tornada pública que essa operação, realizada pela assistente, é comummente designada como publicação e partilha. E a utilização foi lícita, pois destinava-se a servir como meio de prova numa ação", argumentaram.
As juízas concluem que "não há qualquer lesão do direito à imagem da assistente a qual dispôs do mesmo legitimamente, pelo que não há lugar à indemnização pedida".