Condutor alegou que não se inscreveu numa escola de condução porque, dada a sua origem, não sabe ler nem escrever. Relação de Évora respondeu que a lei é igual para todos.
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O Tribunal da Relação de Évora (TRE) negou provimento ao recurso de um arguido que, condenado a prisão efetiva por conduzir um automóvel sem carta e alcoolizado, invocou o facto de "ser de etnia cigana e não saber ler nem escrever" para pedir a suspensão da pena. Num acórdão recente, os juízes responderam que "ninguém pode ser beneficiado ou prejudicado" por ser cigano e mantiveram a punição com oito meses de prisão efetiva.
O arguido começou por ser condenado, em decisão do Tribunal de Beja transitada em julgado em setembro de 2019, numa pena de oito meses, suspensa por um ano, por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e outro de condução sem habilitação legal. Além disso, foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir durante cinco meses e numa coima de 500 euros, ficando ainda obrigado a inscrever-se numa escola de condução para tirar a carta.
Uma semana depois, o homem foi outra vez apanhado por crimes idênticos e condenado a dez meses de prisão, pena substituída por 300 horas de trabalho a favor da comunidade.
segunda oportunidade
Em 24 de outubro de 2020, o tribunal prorrogaria, por um ano, a suspensão da pena de setembro de 2019, dado o incumprimento das obrigações impostas ao condenado, dando uma segunda oportunidade para o condutor se inscrever numa escola de condução.
O arguido tinha três meses para comprovar, junto do tribunal, que efetuara a inscrição. Sem prova da inscrição, o Tribunal de Beja revogou, já em 26 de novembro de 2021, a suspensão da pena de oito meses. Perante esta revogação, que tornaria a prisão efetiva, a defesa recorreu para o TRE. "O arguido é de etnia cigana e não sabe ler nem escrever, apenas assina o seu nome, tendo sido alvo de rejeição por parte das várias instituições que o discriminam quer pela sua cultura e costumes, quer por ser analfabeto", argumentou o advogado, sugerindo que a inscrição do cliente foi recusada por escolas de condução.
Mas o TRE não acreditou que "o facto de o arguido ser de etnia cigana tenha tornado impossível ou, sequer, dificultado a sua inscrição numa escola de condução". "O arguido não o alegou expressamente e, tendo-lhe sido dada oportunidade para o efeito, muito menos o comprovou nos autos", respondeu, referindo que "tal circunstancialismo teria violado todas as regras legalmente vigentes, com assento constitucional, de proibição de tratamento desigual ou discriminatório em função da raça ou etnia".
Em decisão de maio último, a Relação recusou dar provimento ao recurso. "Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. Ninguém pode ser beneficiado ou prejudicado por razões de ascendência ou outra", sustentaram os desembargadores Maria Clara Figueiredo (relatora), Margarida Bacelar e Gilberto da Cunha.
O TRE esclarece ainda que "a circunstância de o arguido ser analfabeto, ou ter dificuldade em ler e escrever, não se revela impeditiva do cumprimento da condição da suspensão da execução da pena de prisão, consubstanciada na inscrição numa escola de condução com vista à obtenção da licença de condução". "O artigo 18.oº do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir (aprovado pelo dec.-lei n.o 138/2012, de 5 de julho, não estabelece como requisito para a obtenção de título de condução a circunstância de o candidato saber ler e escrever", explica.
EXEMPLO
Sócio de escola de Beja diz que não pode admitir analfabetos
Contactado pelo JN, o sócio-gerente e diretor técnico da Escola de Condução Bejense, António Silva, reconheceu que o regulamento da habilitação legal para conduzir, revisto em 2012, "deixou de dizer que era necessário saber ler e escrever para tirar a carta de condução", mas considerou-o impraticável. "Na minha escola, têm de assinar um contrato de formação, para tirar a carta, e percebe-se logo quem não sabe ler. A partir daí, não há hipótese de se candidatar a futuro condutor. Como podem responder a um teste de 30 perguntas?", questionou.
PORMENORES
MP apoiou recurso
O Ministério Público junto do TRE deu razão ao arguido, argumentando que a sua inscrição numa escola de condução era "uma condição impossível (...) para este arguido, em concreto, designadamente por causa das limitações decorrentes da pandemia da covid-19.
Arguido reincidente
Em setembro de 2019, quando foi condenado numa pena suspensa de oito meses, por conduzir sem carta e alcoolizado, o arguido tinha duas condenações anteriores por crimes idênticos e outras seis por crimes diversos.
Tribunal benevolente
Em 8 outubro de 2019, o condutor foi apanhado de novo sem carta e alcoolizado. Cometeu estas infrações durante a suspensão da pena transitada em setembro, mas o tribunal puniu-as com uma pena de dez meses que substituiu por 300 horas de trabalho comunitário - que o arguido não cumpriu.