Mudança de juiz suspeito de corrupção para secção cível do tribunal de Lisboa seria "atentado à democracia", diz Orlando Nascimento. No Porto, transferência apaziguou caso Neto de Moura.
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O presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, Orlando Nascimento, não admite transferir o juiz desembargador Rui Rangel da 9.ª secção criminal para uma secção cível, onde julgaria processos, desde logo, sem mediatismo. Esta sexta-feira, o Ministério Público (MP) viu-se forçado a requerer que Rui Rangel, suspeito de corrupção e branqueamento de capitais na Operação Lex, seja impedido de julgar um recurso no processo da Operação Marquês, em que é arguido o ex-primeiro-ministro José Sócrates.
Uma transferência da área criminal para a cível foi a solução recentemente adotada pelo presidente da Relação do Porto para apaziguar os ânimos em torno do desembargador Neto de Moura, havendo quem entenda, em círculos da magistratura judicial, que seria a melhor solução possível para evitar o escândalo público de ter um tribunal superior a distribuir processos de corrupção, altamente sensíveis e mediáticos, a um juiz que é, ele próprio, arguido por suspeitas de corrupção passiva e branqueamento de capitais, entre outros crimes.
Sucede que o presidente do TRL é da opinião de que, se usasse os seus poderes de gestão para transferir Rangel ou deixar de lhe distribuir trabalho, ou se recebesse instruções nesse sentido da parte do Conselho Superior da Magistratura, isso constituiria uma "grave ilegalidade e um atentado à nossa democracia".
"O princípio da inamovibilidade dos juízes impede o presidente da Relação de transferir um juiz desembargador de secção, sem que sejam ponderadas as necessidades de serviço e o interesse do juiz" e "só porque surgiu celeuma pública sobre se o mesmo tem condições de imparcialidade para decidir em determinado processo", declarou ao JN Orlando Nascimento, pouco depois de, esta sexta-feira à tarde, o MP anunciar que iria levantar um incidente de suspeita sobre Rangel, a decidir pelo Supremo, para o impedir de julgar um recurso seu sobre uma decisão do juiz de instrução Ivo Rosa no caso Marquês.
Visões opostas da lei?
Em março deste ano, o presidente da Relação do Porto, Nuno Ataíde das Neves, invocou a "preservação da confiança dos cidadãos no sistema de justiça" para transferir Neto de Moura de uma secção criminal, onde tinha dado uma sentença num caso de violência doméstica que causara um enorme alvoroço no país, para uma secção cível. Ataíde das Neves explicou então que os ataques públicos ao juiz também eram ataques à Relação e à imagem da Justiça. "Era necessário apaziguamento externo e também interno, em face do desconforto da situação e de todos os "bruaás" e exageros", sustentou, na altura, ao JN.
Aparentemente, a decisão de Ataíde das Neves revela uma interpretação do quadro legal oposta à do seu homólogo de Lisboa. Mas é de notar que Ataíde transferiu Neto de Moura com o seu acordo - "Chamei o senhor desembargador e sensibilizei-o, no sentido de se dar um sinal de acalmia, o que ele aceitou". E esta sexta-feira não foi possível apurar se Orlando Nascimento e Rangel conversaram sobre a hipótese de o segundo se mudar para o recato do cível.
"Motivo sério e grave"
O MP pediu a recusa "por considerar existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do magistrado judicial", afirmou a Procuradoria-Geral da República em comunicado.
Octapharma
O recurso atribuído a Rangel é da iniciativa do Ministério Público e contesta uma decisão do juiz Ivo Rosa, que preside à instrução do caso Marquês, proibindo o uso de emails apreendidos a funcionários, no processo Octapharma, que envolve Paulo Lalanda de Castro, ex-patrão de Sócrates.