Tribunal mantém agressor em casa com a mulher por não saber se tem para onde ir

Mulher será vítima de violência doméstica há cerca de 50 anos
Arquivo Global Imagens
Juízes do Tribunal da Relação do Porto falam mesmo em potencial atentado aos "direitos humanos". Magistrados alegam ainda que recusa da mulher em ter relações sexuais contribui para que existam "conflitos" entre o casal.
O Tribunal da Relação do Porto recusou obrigar a sair de casa um homem suspeito de, há cerca de 50 anos, insultar e violar a mulher, por não saber se este tem condições para se mudar para outro local. No acórdão, os juízes desembargadores José Carreto (relator) e Paula Guerreiro chegam mesmo a defender que o afastamento da habitação de um agressor doméstico sem este ter alternativa residencial pode pôr em causa os "direitos humanos".
"Ao contrário do que ocorre com as vítimas de violência doméstica, a quem o Estado concede abrigo em casas para o efeito [...], o arguido não beneficia de nenhum apoio, o que pode pôr em causa uma medida de afastamento, quando não tem local para se afastar ou condições para o obter", comparam os magistrados, sublinhando que, "nessas condições, podem ser colocados em causa os direitos humanos fundamentais, que a todos são atribuídos".
O caso remonta a 1 de novembro de 2021, quando, lê-se no acórdão, o idoso terá puxado os cabelos e apertado o pescoço à mulher, dizendo, ao mesmo tempo, "sua p***, vaca, andas a trair-me". A vítima ligou então para o 112, mas nem a chegada de uma patrulha da GNR à residência do casal pôs termos à violência do marido.
"Já na presença das autoridades, o arguido disse 'és uma cabra, vou-te matar' e, de seguida, avançou na direção da ofendida e desferiu-lhe empurrões, não tendo logrado agredi-la por ter sido algemado", alegou, ao apresentar o suspeito a tribunal, o Ministério Público. Desde o início do casamento, há 52 anos, que o homem tem, alegadamente, insultado, difamado e forçado a mulher a "ter relações sexuais".
"Ponderar a situação concreta"
Apresentado ao Tribunal de Instrução Criminal do Porto, o arguido acabou por ficar sujeito a apresentações trissemanais às autoridades e sem qualquer proibição de contactar com a vítima. O juiz justificou a decisão com o estado de saúde do arguido, doente oncológico.
Inconformado, o Ministério Público recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, pugnando pelo seu afastamento. Alegou, entre outros aspetos, que o facto de o idoso "padecer de cancro não o enfraqueceu fisicamente, nem o debilitou quanto à possibilidade efetiva de adotar tratamento violento físico e psicológico para com a vítima". A pretensão foi, porém, rejeitada pelo Tribunal da Relação do Porto, que manteve a medida de coação inicial.
No acórdão datado de 16 de fevereiro de 2022, noticiado esta quinta-feira pelo jornal "Público" e entretanto consultado online pelo JN, os juízes desembargadores começam por argumentar que a única situação em causa é a de 1 de novembro de 2021 e não as cinco décadas anteriores. Em seguida, alega que, embora o crime de violência doméstica seja "grave em termos legais", "há que ponderar a situação concreta do arguido".
Desde logo, o facto de sofrer de cancro na próstata e no pulmão, de ingerir com frequência bebidas alcoólicas e de a sua surdez parcial lhe induzir "um sentimento de menoridade". Depois, o modo como a falta de vontade da mulher de ter relações sexuais pode potenciar "conflitos" entre o casal. Em causa está, lê-se, a
"diferente natureza do homem e da mulher em função da idade e da apetência para o ato, que em face de uma ausência de conhecimento ou deficiente compreensão de tal fenómeno, leva a conflitos entre os casais e a eventuais acusações de infidelidade, como parece ser o caso, face ao nível cultural dos intervenientes".
O desejo da vítima de querer continuar a cuidar do marido a par da suspensão provisória do processo e a falta de dados sobre uma alternativa habitacional para o arguido são outros dos aspetos invocados.
"Se algo deveria ser alterado, era a imposição de tratamento psicológico de modo a afastar o estigma da doença (cancro), da surdez e sentimento de inferioridade, ou controle de impulsos, de modo a ajudar o arguido e desse modo também a vítima, potenciando a possibilidade de criação de uma sã convivência", concluem José Carreto e Paula Guerreiro.
INFORMAÇÃO ÚTIL
Qualquer pessoa pode denunciar
A violência doméstica é um crime público e, por isso, pode ser denunciada por qualquer pessoa às autoridades, nomeadamente à PSP e à GNR. Em caso de emergência, pode recorrer-se também ao 112.
Várias linhas de apoio à vítima
As vítimas dispõem de várias linhas de apoio, confidenciais e gratuitas. Entre estas, estão a 116 006, disponível entre as 8 e as 22 horas dos dias úteis, e o 800 202 148, que funciona em permanência durante todo o ano, 24 horas por dia.
