Memória é tudo o que temos e, se calhar, tudo que somos. E, no entanto, pouca coisa é a memória. Diz William James que não recordamos os acontecimentos que um dia vivemos mas a nossa última recordação deles e que, de recordação em recordação, a vida que recordamos é, cada vez mais, apenas uma nebulosa construção presente e cada vez menos presença real (o que quer que "real" possa, no caso, significar) do passado.
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Cheguei, jovem estagiário, ao JN há mais de 40 anos. Não preciso de ver hoje a fotografia do meu primeiro cartão de jornalista para saber que não sou aquela pessoa. Nem psicologicamente, nem biologicamente. Na melhor e mais remota das hipóteses, eu e esse que agora, do fundo do tempo, me olha temos em comum o nome, o número e demais dados de identificação civil (paternidade, naturalidade, data do nascimento) e provavelmente umas poucas e esparsas células do sistema ósseo.
Contudo lembro-me (e esse é, para mim, um mistério singular) de coisas e acontecimentos vividos por esse estranho: as provas do concurso de admissão no JN no grande ginásio, seria um ginásio?, Colégio dos Órfãos (uma, o resumo do discurso de um ministro qualquer, julgo que Silva Pinto; outra, uma crónica sobre alguns nomes de escritores da toponímia do Porto); a convocatória para, numa certa tarde de Janeiro, se apresentar na Redacção; a sua primeira conversa com o sr. Freitas Cruz; o seu primeiro dia de trabalho no Grande Porto, e por aí fora. Lembro-me mesmo da primeira coisa que publicou no JN: uma breve síntese, três ou quatro linhas, de um "inquérito administrativo" convocando os eventuais credores do adjudicatário de uma determinada obra pública, que eu, o de agora, ainda guardo algures.
Ou seja, tenho a cabeça (e não raro o coração) cheia de memórias - nomes, episódios, adversidades, esperanças - de outra pessoa, de alguém que não existe. Alguém com mais cabelo, mais tempo, e muito mais e muito mais infundada confiança no jornalismo do que eu.
Também o JN de que me lembro não existe e parece hoje tão-só - como os rostos difusos dos amigos mortos, o Saraiva, o Serafim Ferreira, o Zé Luís de Abreu, o sr. Manuel Ramos, o dr. Nuno Teixeira Neves, tantos que, como o poeta, nunca pensei que a morte pudesse ter levado tantos - uma miragem, ou, quem sabe?, alguma espécie física e sensível de sonho acordado.
Esse JN que não existe, ou existe num lugar que só uns poucos podem ainda partilhar e, em breve, decerto já ninguém, é um jornal peculiar. Tem umas dezenas de jornalistas na Redacção e milhares, muitos milhares, fora dela. As notícias comuns chegam por correio ou por telex; as grandes notícias, as que fazem as primeiras páginas e a diferença do JN, por telefone.
Levanta-se o auscultador e, do outro lado, alguém pergunta: "É do JN?". E, depois de obtida a confirmação: "Moro na rua tal, no sítio tal, ocorreu mesmo agora aqui um...". Quem recebe o telefonema anota, agradece, fala com o responsável da Secção, chama o fotógrafo e o motorista e parte apressadamente.
Não raro chegará ao lugar da notícia (um acidente, um incêndio, um crime) primeiro que as autoridades ou os bombeiros porque as testemunhas telefonam primeiro para o jornal e só depois - e, às vezes, se calhar de terem uma máquina fotográfica à mão, só depois de terem tirado a foto para a primeira página do dia seguinte - telefonam para, como é costume dizer-se, "quem de direito".
É uma relação de cumplicidade e familiaridade que faz de cada leitor do JN, desse JN, um repórter. E cada um sabe que o JN lhe pertence também, e que pode contar (e conta diariamente) com a sua reciprocidade se e quando precisar.
Justamente uma das memórias mais fortes que tenho desse JN (talvez porque fosse então estagiário há apenas pouco mais de uma semana e, de repente, tivesse nesse momento vislumbrado com inteira nitidez o seu rosto -, é a de uma vendedeira de idade incerta ( 60?, 70 anos?) na recepção, pedindo ao contínuo que a anuncie a alguém da Redacção. Pretende contar algo que sucedeu na Câmara do Porto e, com o ar de quem está perante uma última, e justa, e confiável instância de recurso, diz: "Eu avisei-os que, se não resolvessem o caso, vinha ao JN. Não quiseram saber; agora, quando amanhã lerem o jornal, caem de cu e eu não estou lá para os aparar!".
Não sei se "eles", quem quer que fossem, terão ou não caído de cu, mas sei que a notícia saiu. E sei que, um qualquer dia mais tarde, a mesma vendedeira ou outra telefonaram para o jornal dando uma notícia de primeira página que, na manhã seguinte, apenas o JN publicou.