A voz que atende a chamada telefónica é a de um homem cansado. Um dia inteiro a falar com jornalistas, a partir do seu escritório em Brighton, Inglaterra, fez às cordas vocais de Nick Cave o que nem as digressões fisicamente mais extenuantes conseguiram.
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A súbita limitação não atrapalhou a disponibilidade do músico para responder a todas as questões. Apenas a chegada dos seus filhos, os gémeos Arthur e Earl, de 13 anos, interrompeu por instantes uma conversa na qual Cave não se furtou a nenhum tema, fosse o bom ambiente reinante nas gravações do novo disco - "Push the sky away", com lançamento depois de amanhã -, a longevidade do percurso com os Bad Seeds ou, até, a insólita capa do álbum.
O novo disco revela um grande apaziguamento na maioria dos temas, mas tem também uma faceta sombria, perturbadora até. Foi por isso que o comparou a um bebé-fantasma?
As letras são perturbadoras, o que costuma ser habitual, mas o som requer um certo espaço e silêncio para se expandir. A tensão virá daí. Procurámos ir ao encontro desse conflito latente. Não foi algo, porém, que tivéssemos pré-estabelecido. Quando chegámos ao estúdio, sentimo-nos de imediato envolvidos por uma atmosfera muito particular. O disco soa desse modo devido ao estúdio, em parte. Teve um grande impacto na definição do som a seguir.
Há imagens muito fortes no disco, como no tema "Higgs Boson blues", em que convoca o "bluesman" Robert Johnson e Lúcifer. Se fosse confrontado com esse acordo, que, segundo a lenda, Johnson fez, de vender a alma em troco de um talento único, qual seria a sua reação?
Venderia a alma, claro. Não hesitaria.
De certeza?
Sim. Acredito só no que podemos fazer aqui, na Terra. Não me preocupo muito com o que possa acontecer depois. Desde que vender a alma não significasse corromper-me neste Mundo... Se vender a alma tivesse apenas implicações depois da vida, fá-lo-ia sem problema. Sobretudo porque aprendia a tocar guitarra, o que sempre quis.
Acha mesmo que à medida que envelhecemos nos tornamos mais frios, como diz numa das letras do disco?
É algo com o qual tento lutar, pelo menos. Refiro-me sobretudo à frieza crescente perante as coisas, à incapacidade de nos estimularmos com experiências que, na juventude, nos preenchiam. Uma das estratégias a que recorro para prevenir esse risco é a de colaborar e trabalhar com pessoas cujo trabalho admiro e que representam uma fonte de inspiração para mim.
Por revelar sabedoria na forma como gere a tensão entre elementos opostos, este é um disco passível de ser criado apenas numa idade madura? No início da carreira, seria improvável que o disco soasse deste modo.
A palavra "sabedoria" deixa-me sempre um pouco de pé atrás... O que menos me interessa ao ouvir o disco de alguém, sobretudo de um artista que admire, é aprender coisas. Não ouço um disco para aprender coisas. Quando ouço algo, é para alcançar o que a música nos traz: transportar-nos para uma dimensão diferente, elevar-nos, no sentido espiritual, face ao resto. Não estou nada preocupado com a sabedoria.
"Push the sky away" foi o primeiro disco dos Bad Seeds sem Mick Harvey (abandonou o grupo em 2009). Foi estranho ensaiarem e não verem lá o Mick, como se habituaram durante décadas?
Sim, foi. Já depois da saída do Mick, fizemos uma digressão, o que ajudou a digerir um pouco a saída, mas é claro que, sem ele, a atmosfera no estúdio foi um pouco diferente.
As imagens das gravações libertadas para a imprensa sugerem um ambiente muito descontraído.
"Descontraído" talvez não seja a palavra mais indicada. Trabalhámos incrivelmente no duro para que tudo soasse como desejávamos. O local pode parecer paradisíaco - e é, de facto -, mas, para nós, foi uma espécie de bunker. Ninguém abandonou o edifício até tudo estar pronto. Foram três semanas de reclusão total. O pequeno vídeo de que fala pode sugerir o contrário, mas a verdade é que o processo de gravação foi muito intenso. Emocionalmente, também foi rico. Por vezes, as sessões de estúdio podem ser verdadeiros campos de batalha, a que não faltam sequer banhos de sangue... Desta vez, porém, não foi nada disso. Sentimos que a nossa reunião se deveu a um objetivo comum. Isso ajudou a transmitir à experiência uma profundidade pouco habitual. Para todos.
Ver as ideias que traz para o estúdio a dar lugar a algo sólido como canções é a melhor parte do processo criativo?
Quando entro no estúdio, a agonia já passou. A pior parte acontece quando estou sozinho a criar. Isso, sim, é assustador. A gravação é simples: entrego o material a músicos em quem confio e que admiro. Essa parte até é excitante.
Ainda sente agonia no ato de criar?
É tudo menos fácil. Causa-me, como direi...
Dor?
Não direi isso, porque é um desrespeito para todos aqueles que exercem funções de que não gostam. E eu adoro o que faço. Tenho um certo pudor em utilizar palavras fortes para definir a dificuldade do processo criativo e de escrita, pelos motivos que já expus. Mas, no início, passo por momentos de grande incerteza, receando se serei capaz de voltar a criar... As vozes que tenho na cabeça, como pequenos Gremlins, aparecem sempre nestes momentos e enchem-me de dúvidas.
Sempre se expôs muito em tudo o que faz, mas, desta vez, acedeu a outro nível, ao colocar na capa do disco uma imagem do seu quarto e da sua própria esposa nua. Como surgiu a ideia?
Foi totalmente acidental. Parece uma imagem encenada, mas não é. A minha mulher estava a fazer uma sessão fotográfica de moda para uma revista. Entrei no nosso quarto enquanto ela estava a mudar de roupa e a fotógrafa Dominique Issermann pediu-me para abrir a janela do quarto, o que levou a que uma rajada de vento percorresse o espaço. Só mais tarde, ao vermos o resultado da sessão, é que nos deparámos com esta imagem incrível e não hesitámos por um instante sequer quando chegou a altura de escolher a capa. É uma foto bela e ambígua.
Cinco anos passaram sobre o anterior disco dos Bad Seeds, "Dig Lazarus dig", e, no entanto, não esteve parado este tempo todo. Voltou a gravar com os Grinderman, esteve em digressão, escreveu um romance... Apesar dos projetos paralelos, os Bad Seeds continuam a ser fundamentais?
Sou músico, acima de tudo. Quando viajo, o que aparece no meu passaporte é a profissão de músico. Não sou escritor, argumentista, ou qualquer outra coisa.
E como ficam os Bad Seeds no meio disso tudo?
Eles são a essência de tudo o que faço. Há algo de único na sua conceção. É uma comunidade de músicos que partilham ideias e valores. Não apenas um conjunto de músicos com quem me encontro de ano a ano. É por isso que o Barry Adamson nos vai acompanhar na próxima digressão.
São 29 anos juntos, certamente é a sua relação mais longa.
O que é notável é que, quando gravámos o disco, partilhámos o quarto durante três semanas. Não há muitos casamentos em que se possa dizer o mesmo (risos).
Há mais de 30 anos, quando iniciou a carreira, alguma vez imaginou que iria receber um grau académico como o de doutor de letras, que a Universidade de Brighton lhe outorgou no ano passado?
(risos) Nunca pensei nesses termos... Na verdade, além desse, também já recebi distinções de universidades escocesas e australianas. Mas já decidi que não volto a aceitar esses galardões.
Não?
Fiquei satisfeito e honrado, claro, mas entendo já ter recebido os suficientes.
A respeitabilidade que o seu trabalho adquiriu entretanto, de que os doutoramentos honoris causa são prova, não pode ser, de certa forma, uma armadilha?
Possivelmente. Só que os meus pais estiveram profissionalmente ligados a vida toda ao ramo do ensino. Por isso, aceitar esses prémios com um forte cariz educativo representou um reconhecimento ao papel que os meus pais tiveram na minha educação. É provável que possam ser, como diz, uma ameaça, mas, pelo menos, fizeram a minha mãe feliz. Isso, sim, é uma armadilha (risos).
Nos próximos meses, devido à digressão promocional do novo disco, vai estar em viagem de forma quase permanente. Estar em digressão é mais cansativo emocional ou fisicamente?
Fisicamente, os concertos são ótimos. Costumo ficar muito mais elegante no final das digressões do que no início... Mentalmente, é pior, porque a repetição cansa sempre.
Apesar de os seus concertos raramente serem iguais.
Obrigado.
Como é que um homem de família lida com a ausência prolongada de casa durante as digressões?
Essa é a parte mais difícil. A minha mulher não costuma acompanhar-me, embora, às vezes, venha ter comigo. Sinto muito a falta dos meus filhos, sem dúvida. Mas procuro compensar, estando muito tempo com eles fora das digressões.
Desejoso de voltar ao Porto (vai atuar no Primavera Sound, no Parque da Cidade, a 1 de junho)?
Sem dúvida. Já tivemos grandes concertos nessa cidade.