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As calças de Isabel de Castro, o “vírus” chamado Óscar Lopes, o número de processo individual de Fernando Távora nos relatórios da polícia política. A ditadura inscreveu na história deste país inúmeros exemplos de perseguição à cultura e às casas de cultura do Porto. Como resistiram? Prosseguindo. O JN foi ao encontro dessas instituições que, mais ou menos visadas pela censura, sempre foram espaços de liberdade. E de resistência.
Júlio Gago não viveu o 25 de Abril em Portugal. Como outros, fugiu do serviço militar, acabou por ser deportado para a Guiné-Bissau e só sentiu o cheiro da liberdade em junho de 1974. Figura incontornável do Teatro Experimental do Porto (TEP) – companhia profissional mais antiga do país e eternamente ligada ao génio de António Pedro, o seu primeiro diretor artístico –, foi lá que trabalhou entre 1965 e 1968, tendo depois regressado já nos anos 90.
Uma das funções que desempenhou nesses quatro anos foi a de assistente de encenação. Conta-nos que o TEP viu mais de 300 peça proibidas pela censura, como sucedeu a “O rei está a morrer”, de Eugène Ionesco, “por, alegadamente, atentar contra o regime”. O autor de origem romena nem era dos mais visados – Júlio Gago lembra que os censores, “ de maneira geral, não percebiam o teatro do absurdo” –, mas a verdade é que o espetáculo estava pronto e não passou. Júlio teve de encontrar uma solução em 15 dias.
Entre os “casos anedóticos” a que assistiu está também o de Isabel de Castro, em 1967, na peça “O tempo e a ira”, de John Osborne. Apesar de no Porto as senhoras já usarem calças desde os anos 50, a moral salazarista não permitiu que a atriz o fizesse em palco, pelo que, tanto no ensaio de censura como na estreia, teve de usar uma saia. “Ela punha uma perna em cima de um sofá e mostrava as cuecas, mas isso já era possível. A senhora podia mostrar as cuecas”, graceja Júlio.
Nesses tempos era “obrigatório reservar quatro lugares para o caso de aparecer alguém da censura à última da hora”, refere. Tal não aconteceu nas cerca de 40 apresentações de “O tempo e a ira” que se seguiram à estreia e Isabel de Castro lá vestiu as calças.
Com “A voz humana”, de Jean Cocteau, a censura não levou a melhor. A primeira parte do espetáculo era dedicada à poesia e, apesar de ter sido proibida de recitar a “Ode à liberdade”, de Jaime Cortesão, Maria Barroso declamou o poema. Castelo Branco, o funcionário do Estado mais presente no TEP, “não fez ondas”, recorda o nosso interlocutor.
Cooperativa Árvore
Quando se deu a revolução, a Cooperativa Árvore estava sob a direção de José Rodrigues, um dos fundadores e a figura que mais tempo liderou a instituição. É através das suas memórias, sobretudo, que José Emídio, atual presidente, nos conta as histórias passadas durante a ditadura.
Havia colóquios e muita música, como o célebre concerto de Zeca Afonso que foi “abruptamente interrompido” pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado, vulgo polícia política), tal como uma sessão de poesia de Mário Viegas. Algumas exposições chegaram a ser proibidas, os colóquios eram vigiados.
“A PIDE estava cá, normalmente. Aliás, fazia relatórios. Há documentos internos da polícia política a mandar os agentes”, lembra José Emídio, estimando em 600 os documentos, já recuperados em formato digital, “que ilustram muito bem toda essa pressão” vivida na cooperativa, que foi criada como espaço aglutinador de homens e mulheres ligados às artes plásticas e à arquitetura. Pessoas que “se juntavam com objetivos comuns” – artísticos, em primeiro lugar – “e um deles seria também esse de resistir ao regime”, sublinha.
Entre os relatórios da PIDE sobressaem muitos equívocos e percebe-se, por exemplo, que os censores conseguiam aceder à correspondência com métodos sofisticados, sem abrir os envelopes. Qualquer figura que passasse pela Árvore, fosse qual fosse o motivo, tinha automaticamente “direito” a um número individual de processo. Foi o que sucedeu, por exemplo, ao arquiteto Fernando Távora.
Na Árvore já está patente ao público a exposição comemorativa dos 50 anos do 25 de Abril. “Resistência e Revolução!” é composta por dois núcleos essenciais e pode ser visitada até ao dia 11 de maio.
Uma das salas exibe cartazes do Movimento das Forças Armadas, outros alusivos às antigas colónias (alguns com desenhos de José Rodrigues) e ainda dois exemplares icónicos: “A poesia está na rua”, que teve origem numa pintura de Vieira da Silva, e a imagem do menino a pôr um cravo no cano de uma espingarda. Diogo Bandeira Freire, então com três anos, ficou célebre na imagem captada por Sérgio Guimarães.
A outra parte da exposição requer mais tempo do visitante, para que possa captar os detalhes, em particular dos relatórios da PIDE. Primeiras páginas de jornais, incluindo as edições do JN dos dias 25 e 26 de abril de 1974, cartas, comunicados, abaixo-assinados e autocolantes estão também entre os testemunhos de quem gritou pela liberdade do país e pelo fim da guerra colonial.
Associação de Jornalistas
Entre os relatórios da PIDE estão também algumas centenas de registos alusivos à Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, na esmagadora maioria sobre os colóquios que ali começaram nos anos 60. Apesar de a revista “Gazeta Literária” já ser, por si só, “uma forma de contestar a ditadura”, como lembra Francisco Mangas, presidente da Direção, eram os encontros com os grandes autores que mais despertavam a atenção da censura.
Daí que o grande organizador dos colóquios, Óscar Lopes, tenha sido classificado nesses registos como “um vírus cultural da cidade que está a contaminar a juventude”. As sessões sobre literatura eram promovidas "na senda do movimento cultural que já havia no Porto, na altura", refere.
Os colóquios tinham cada vez mais gente, sedenta de ouvir Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro ou Urbano Tavares Rodrigues. E a PIDE lá estava para anotar até os nomes de quem, durante os debates, fazia perguntas, que tinham de ser previamente escritas e visadas.
Perante a previsão de enchente no colóquio de Ferreira de Castro, um dos autores mais lidos em Portugal e no estrangeiro, foi preciso mudar para o cinema Nun'Álvares e, ainda assim, "muita gente ficou de fora". Outra sessão que se previa concorrida foi a de Erico Verissimo, conceituado escritor brasileiro, que teve lugar no Coliseu. Tempos depois, o autor de "Olhai os lírios do campo" confessou ter ficado sensibilizado com o desabafo que alguém lhe enviou da plateia: "Eu só queria ter duas horas de liberdade", recorda Francisco Mangas.
Devido a pressões do regime, Óscar Lopes acabou por sair da Associação de Jornalistas e prosseguiu com os colóquios nos Fenianos, mas apenas por um ano ou dois. Quanto à “Gazeta”, que, segundo Francisco Mangas, “era aberta a todas as correntes políticas e estéticas”, viu muitas vezes censurados textos de David Mourão-Ferreira ou alusivos à sua obra, e de muitos outros autores, incluindo estrangeiros, como Albert Camus.
Cineclube
A censura ao Cineclube do Porto, o primeiro do país, era visível até nos jornais. Refira-se, a título de exemplo, a convocatória de uma assembleia geral que o JN foi proibido de publicar, em 1965, assim como um artigo de “O Primeiro de Janeiro” sobre a exibição de “Pedro, o louco”, de Jean-Luc Godard, do qual apenas sobraram a ficha técnica e a biografia do realizador. O texto de apresentação e os comentários foram completamente cortados pelos censores, em 1969.
Fernando Pereira, sócio e antigo dirigente, conta-nos que a forma de o Cineclube contornar o sistema era um pouco como faziam “os cantores de antes do 25 de Abril, que passavam mensagens de forma muito subliminar, mas que estavam lá”. Ou seja, “introduzir uma ideia mais ou menos metafórica do filme e escapar àquilo que é absolutamente limitativo de quem estava a censurar”. Além das películas propriamente ditas, também os programas alusivos à estreia eram vistos previamente.
Embora muitos realizadores estivessem barrados à partida – cita o exemplo de Roberto Rossellini e o seu “Roma, cidade aberta” –, alguns chegavam cá. “Inclusivamente cinema forte na altura, que era o do bloco de Leste”, afirma. Além disso, Fernando Pereira acrescenta outro mérito à instituição. “Um mérito muito mais subterrâneo: a possibilidade de, por uma coisa tão prosaica como ir ver um filme, juntar uma comunidade dentro de uma sala que era uma comunidade muito especial”. E que de tudo falava.
Caso esteja o leitor curioso acerca dos documentos do Cineclube do Porto que foram vistos pela censura, pode programar uma visita à Casa do Infante, que guarda inúmeros testemunhos do velho regime. Poderá ver que o programa do ciclo dedicado ao mestre Manoel de Oliveira, que incluiu a exibição de "Aniki-Bóbó", não sofreu o mínimo beliscão. Já o programa de “A queima do ouro”, de Charles Caplin, foi completamente cortado. Outros exemplos há de textos referentes às estreias que foram autorizados, mas com cortes.
Ateneu
No Ateneu Comercial do Porto, a realidade foi diferente. Também por ali passaram grandes vultos da cultura, em particular da literatura e da música, mas, como os eventos não eram públicos, “não tinham de ir à censura, não precisavam de visto prévio”, conta-nos o presidente, Rogério Gomes.
Como “espaço de liberdade reservado”, onde a polícia política não entrava, recebia livremente os “inconformados com o regime” e até opositores. Um deles foi Jorge de Sena, em 1946, anos antes de se exilar no Brasil. “O Jorge de Sena esteve aqui a fazer uma conferências e foi dos primeiros em Portugal, se não o primeiro, a referir a importância do Fernando Pessoa na cultura portuguesa”, recorda o responsável.
Apesar de o Ateneu ter felicitado António de Spínola e a Junta de Salvação Nacional, pela “restauração das liberdades democráticas” – como ficou lavrado em ata, em maio de 1974 –, foi também palco de um incidente com os cantores Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e Vitorino. “Consideraram que isto era um local da burguesia elitista, o que em parte era verdade, e não fizeram o concerto que estava programado. O que a Direção até achou estranho na altura, uma vez que esta foi a casa onde o Antero de Quental lançou a Liga Patriótica do Norte”, sublinha.
"Tudo o que era escritor e vulto passava por aqui. Primeiro, porque sabiam que era um espaço onde eram apreciados e, segundo, podiam livremente expressar as suas ideias", prossegue Rogério Gomes.
Também local de espectáculos, particularmente de música clássica, o Ateneu recebeu muitas vezes António Victorino D'Almeida. E Maria João Pires, consagrada pianista, atuou ali com apenas nove anos. Outra das presenças foi Miguel Torga, a quem a instituição atribuiu, em 1954, o prémio Almeida Garrett de poesia.
Imagem e edição: André Manuel Gomes; Joana M. Soares; José Gabriel e Sara Barbosa Oliveira