Manifestações na América contra a determinação do Supremo Tribunal. França prontifica-se para fazer da "Lei Veil" um direito constitucional. E a Alemanha suprime lei nazi. As repercussões internacionais da decisão contra a Interrupção Voluntária da Gravidez.
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Nove dos 50 Estados que compõem a federação americana não perderam tempo, aplicaram sem delongas a sentença do Supremo Tribunal e praticamente interditam a interrupção voluntária da gravidez (IVG). Pelo menos, outros 18 estados preparam-se para fazer o mesmo muito rapidamente, o que cria uma clivagem sem precedentes nas terras do Tio Sam. E também repercussões muito prontas por todo o mundo: a Alemanha suprimiu uma lei da era nazi sobre o aborto assistido e a França ergue-se para inscrever a IVG como direito constitucional.
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No que o ex-presidente, Donald Trump, vê "a vontade de Deus", o atual inquilino da Casa Branca, Joe Biden, verifica "um vergonhoso retrocesso histórico", com repercussões mundiais. As manifestações verificadas nas grandes cidades americanas, contra a perda de um direito constitucional que vigorava desde 1973, é a evidência de uma fratura ideológica, entre os democratas e os conservadores republicanos, estes em clara superioridade no Supremo Tribunal (seis de nove juízes, três dos quais nomeados por Trump).
A América profunda, o Alabama, o Arkansas, o Dakota do Sul, a Luisiana, o Kentucky, o Oklahoma, o Missouri, o Utah e o Winconsin não demoraram nem 24 horas a aplicar a nova ordem, emanada na sexta-feira. Nada verdadeiramente inesperado: numa decisão pressentida havia meses, a mais alta instância judicial dos Estados Unidos revogou a própria jurisprudência de meio século, deixando a cada Estado a liberdade de legislar como bem entende. O Idaho, o Tennessee e o Texas tinham já adotado "trigger laws" para engatilhar a nova determinação em trinta dias.
Indignação
A lei não prevê exceções em caso de violação ou de incesto, o que gerou ainda mais indignação e por todo o Mundo, desde logo em França, a própria pátria de Simone Veil (1927-2017), ministra da Saúde que defendeu o projeto de lei que despenalizou a IVG no "hexágono", em 1974.
Quase meio século depois, Paris alarma-se com as notícias que chegam da América e indigna-se com "o retrocesso civilizacional", como lhe chama a líder da bancada parlamentar da LREM, que apoia o presidente Emmanuel Macron. Aurore Bergé anuncia uma proposta de lei para inscrição da IVG na Constituição francesa.
"Em todo o Mundo, a cada nove minutos, morre uma mulher na prática de aborto inseguro. Em França, devemos tomar posição para que nada disto se verifique", relembra a deputada. Aurore Bergé também verifica em redor, entre os 89 deputados da extrema-Direita, eleitos para a Assembleia Nacional, pela União Nacional (UN), "opositores ferrenhos do acesso das mulheres à IVG".
A UN foi, durante muito tempo, radicalmente anti-aborto. Ainda em 2021, Marine Le Pen declarava abertamente ser contra a comparticipação da IVG pelo Estado, antes de se proclamar, em período eleitoral, como "primeira defensora dos direitos das mulheres". Mais recentemente, um deputado da UN, Philippe Ballard, garantiu que "a lei Veil é intocável", embora a extrema-direita tenha votado contra o alargamento do prazo da IVG de 12 para 14 semanas.
As ondas de choque também chegaram além-Reno: o Parlamento suprimiu uma lei que remontava ao período nazi e que limitava a informação e publicidade à IVG. Segundo a ordem de Adolph Hitler, adotada em 1933, os médicos que divulgassem os métodos de aborto incorriam em pena de cadeia até dois anos. Os partidos da coligação governamental, os sociais-democratas (SPD), os Verdes e os liberais (FDP) aprovaram a supressão da lei de quase nove décadas. Os democratas-cristãos (CDU) e a extrema-direita (AfD) votaram contra.
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Antes da decisão do Supremo, já o ultraconservador Estado do Texas tinha adotado, em setembro de 2021, a chamada "Lei dos batimentos". O argumento (deteção cardíaca no feto após seis semanas de gestão) dividiu a comunidade médica e científica e continua a gerar muita controvérsia.
Soberania da pílula
ONG's internacionais exortam os poderes públicos à adoção de políticas de defesa da IVG e de planeamento familiar. O Alto Conselho para a Igualdade entre Mulheres e Homens, sediado em Paris, recomenda à Europa que retome o mais rapidamente possível a soberania na produção da pílula abortiva.
Europa - Exceções à regra
Na Europa, a proibição total é uma exceção: em Malta, onde em caso de infração a pena incorrida varia de 18 meses a três anos de prisão, assim como nos dois micro Estados de Andorra e do Vaticano.
Ásia e África - Acessos restritivos
Noutros países, o aborto está sujeito a condições extremamente restritivas. A IVG é acessível apenas em caso de perigo para a vida da mãe na Costa do Marfim, Líbia, Uganda, Sudão do Sul, Iraque, Líbano, Síria, Afeganistão, Iémen, Bangladesh, Birmânia, Sri Lanka.
América do Sul - Direitos avançam
No continente sul-americano, o direito ao aborto continua a avançar. Em fevereiro último, a Colômbia legalizou a IVG, seja qual for o motivo e antes das 24 semanas de gravidez. No Brasil, o acesso ao aborto é limitado a casos de violação, risco para a mãe ou malformação grave do feto.
Oceania - 119 anos de espera
Na Austrália, Nova Gales do Sul tornou-se no último estado a descriminalizar o aborto, em setembro de 2019, abolindo uma lei de 119 anos. A Nova Zelândia descriminalizou a IVG apenas em 2020.