Académicos portugueses a viver nos EUA notam a "instalação do medo" nas universidades
Os últimos dias da administração Trump marcados pelo embate com as universidades norte-americanas estão a mergulhar a academia dos Estados Unidos num clima de “instabilidade” e “medo”. Quem o diz são dois académicos portugueses a viver e a trabalhar há vários anos na América.
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“O maior problema é a insegurança, o não se saber qual é o problema de amanhã”, afirma Leonardo Ferreira, de 34 anos. Daniela Melo, de 43 anos, refere que já se nota a “fuga de cérebros” e quem poderá ganhar com a situação é a Europa, se souber aproveitar a oportunidade de “se lançar à liderança do Mundo livre”.
Depois de uma licenciatura em Bioquímica na Universidade de Coimbra, Leonardo Ferreira viajou para os Estados Unidos em julho de 2011 e por ali continuou o seu percurso académico. No currículo conta com um doutoramento em Bioquímica e Biologia na Universidade de Harvard, considerada uma das instituições de Ensino Superior mais poderosas e reputadas do Mundo e com quem Trump está atualmente em “guerra” aberta. Fez também um pós-doutoramento na Universidade da Califórnia, em São Francisco, e em 2021 criou o seu próprio laboratório na Universidade Médica da Carolina do Sul.
“A pior parte de tudo isto é a instabilidade, a insegurança e o não saber o que acontece a seguir”, diz o português de 34 anos. A administração de Donald Trump fez uma lista de exigências a várias universidades norte-americanas, sob ameaça de quebra de financiamento caso não cumprissem com as novas regras. A justificação do presidente republicano é querer “combater o antissemitismo nos campus”, explica Daniela Melo, professora na Universidade de Boston. No ano passado, várias universidades nos EUA foram palco de manifestações pró-Palestina e contra a intervenção militar de Israel em Gaza.
Bolsas canceladas depois de aprovadas
A Universidade de Columbia, em Nova Iorque, parece ter cedido às regras do presidente dos Estados Unidos, que incluem a intervenção de um responsável para rever os departamentos de estudos relacionados com o Médio Oriente. Caso não aceitassem, Donald Trump determinaria o congelamento de 400 milhões de dólares (mais de 351 milhões de euros) em financiamento à instituição. Na última semana, o presidente da Universidade de Harvard contrapôs e não aceitou as exigências do Governo federal, o que levou ao cancelamento de 2,7 milhões de dólares em bolsas de investigação (mais de 2,3 milhões de euros) e a uma possível proibição de matrículas de estrangeiros.
Para Leonardo Ferreira, os valores de financiamento para a ciência nos Estados Unidos continuam a ser muito elevados, quando comparado, por exemplo, com os países europeus. “O problema não tem sido tanto a quantidade de dinheiro, mas como vai ser alocado daqui para a frente”, refere o também professor universitário. “O que se tem visto é que algumas universidades estão a cancelar bolsas e argumentam que já não se alinham com os valores da instituição”, acrescenta. O investigador diz que há candidatos que estão a recorrer aos tribunais, uma vez que já tinham a garantia de financiamento.
O JN contactou várias universidades portuguesas que têm parcerias com congéneres norte-americanas. Todas referiram que os acordos se mantêm ativos, mas há quem admita estar atento aos desenvolvimentos. “Até ao momento não houve consequências para as parcerias existentes com universidades norte-americanas, mas isso não significa que não possam vir a ter. Como em qualquer situação do género, sempre que há uma quebra abrupta de financiamento a uma instituição, é natural que estas tenham de rever todas as suas atividades”, aponta fonte oficial da Universidade do Porto.
Fontes oficiais dos programas MIT Portugal e Carnegie Mellon Portugal afirmam que as parcerias “estão a decorrer com normalidade” e foram renovadas até 2030.
“Censura à liberdade académica”
“Donald Trump está a usar os fundos federais, destinados há 60 ou 70 anos à investigação científica, como um projeto ideológico e um instrumento para transformar a universidade”, afirma Daniela Melo. A professora da Universidade de Boston refere que o presidente dos Estados Unido está a “rasgar um pacto social” que durante anos foi basilar para a promoção da descoberta e da inovação a partir da América. “Há uma certa instalação do medo que vem com a imprevisibilidade, que só pode ser interpretada como censura à liberdade académica”, salienta.
Há 27 anos a viver nos EUA, a cientista política nota que a “fuga de cérebros” já começou, com grandes nomes da academia norte-americana a emigrar para o Canadá. “Sabemos que as grandes mentes da investigação científica dos Estados Unidos podem ir também para a Europa, onde terão liberdade de investigação e inovação”, acrescenta. Vários reitores e académicos em Portugal têm defendido a necessidade de criação de um programa europeu, ou até mesmo nacional, para captar talento norte-americano.
“No contacto com colegas norte-americanos, sobretudo na área das humanidades, vejo que estão em estado choque, à espera de uma grande catástrofe. Ao contrário do que aconteceu nos anos 40 e 50, quando muitos intelectuais europeus viajaram para os Estados Unidos, agora vai acontecer o oposto”, sublinha Hermenegildo Fernandes, diretor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Para o académico, “a Europa tem o dever moral e o interesse de criar programas europeus e nacionais” para os investigadores norte-americanos.
Face às várias mudanças implementadas por Trump, Daniela Melo defende que a Europa tem a oportunidade de se “lançar à liderança do Mundo livre”. “Os europeus têm que decidir em que Mundo é que querem viver. Querem viver numa ordem internacional liderada por autocracias ou querem eles próprios impor a sua liderança democrática na ordem internacional?”, conclui.
“American corners” continuam ativos
Apesar da polémica do envio de perguntas da embaixada dos Estados Unidos em Lisboa às universidades portuguesas, a maioria das instituições em causa diz que os "american corners" continuam ativos nas suas instalações, mesmo depois dos diretores das faculdades portuguesas terem recusado responder às questões.
Em março, à semelhança do que já tinha sido feito com empresas portuguesas, a embaixada dos EUA em Lisboa enviou perguntas às universidades nacionais com “american corners”. Os espaços são financiados pelo Departamento de Estado dos EUA e tem o intuito de difundir a língua inglesa, a cultura, a história e a ciência norte-americana.
No documento enviado pela embaixada era questionado se as universidades portuguesas tinham ligações a partidos comunistas, redes terroristas, à China, ao Irão, à Rússia, quais eram os estudos sobre alterações climáticas e o que faziam para proteger as mulheres da ideologia de género.
Marie Blanchard, porta-voz da Embaixada dos EUA em Portugal, disse em resposta ao JN que existem “excelentes relações com todos os seis ‘american corners’”. “Continuaremos a colaborar numa série de programas e iniciativas que promovam os nossos objetivos comuns”, apontou.