Afogados em garagens e arrastados por detritos: maioria morreu antes do alerta da proteção civil em Valência
Os depoimentos de familiares de vítimas e afetados pelas enchentes provocadas pela tempestade DANA, no ano passado, em Valência, revelam que a maioria mortes ocorreram antes do envio do alerta por mensagem de texto da proteção civil para os telemóveis da população às 20.12 horas do dia 29 de outubro.
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A enchente deixou 224 mortos, três desaparecidos que agora podem ser formalmente declarados mortos, além de perdas materiais na casa dos milhões de euros.
O relatório da juíza que tutela a instrução deste caso, citado por vários meios de comunicação social espanhóis, inclui centenas de testemunhos de familiares e conhecidos de pessoas que morreram em caves e pisos térreos, dentro de elevadores ou quando tentavam salvar carros estacionados dentro de parques e garagens. Segundo os relatos, a maioria das vítimas desapareceu entre as 19 horas e 20 horas horas locais de 29 de outubro, em garagens e pisos inundados.
Os testemunhos descrevem um cenário em que água começou a subir em municípios como Massanassa às 18.30 horas, que arrastou veículos às 19 horas e arrancou muros, postes de iluminação, portas de garagem, ficando as ruas sem iluminação antes das 19.30 horas. Os depoimentos prestados à Guarda Civil e ao tribunal, aos quais a "Europa Press" teve acesso, descrevem um "tsunami" com um barulho que era "como o do mar".
A maioria dos depoimentos prestados à Guarda Civil ocorreu após 31 de outubro, quando os corpos dos familiares foram localizados. Este é o caso de uma mulher que relatou que o marido, de Benetússer, morreu no dia 29. A mulher conta que, por volta das 20 horas, ouviram pessoas a gritar e o marido, que era agente da polícia, desceu até à garagem para ajudar as pessoas que lá estavam. Enquanto isso, uma carrinha arrastada pela água que entrava partiu a porta da garagem, inundando o espaço. O marido não conseguiu sair a tempo de se salvar, bem várias outras pessoas que morreram na garagem.
Outra mulher relata a morte do pai de 74 anos em Catarroja, explicando que, no dia da enchente, o homem foi à garagem subterrânea do prédio para ver se conseguia tirar o carro. Eram cerca das 19 horas. Vários vizinhos apareceram e alguns conseguiram retirar os veículos, mas os vizinhos disseram que o pai ficou na rampa dentro do carro.
Noutro caso semelhante, um casal de Massanassa desceu à garagem para tirar o carro às 18.15 horas. Lá, foram surpreendidos por uma enchente e não conseguiram sair. Ambos seguraram-se no corrimão da rampa para não serem levados pela corrente. A certa altura, o homem desmaiou e a mulher não o conseguiu segurar. Acabou por ser levado pela corrente. A mulher continuou agarrada à grade até ser resgatada pelos vizinhos oito horas depois.
As garagens parecem ter sido muitos dos locais que levaram à morte de várias pessoas. Segundo uma testemunha, o pai, ao ver que chovia, desceu à garagem subterrânea para retirar os veículos antes que fossem alagados. Enquanto lá estavam, a garagem começou a alagar e o pai decidiu sair pela rampa, mas escorregou e foi levado pela força da água.
Outra moradora de Catarroja conta que o filho os avisou por volta das 18.15 horas. O marido foi à garagem, mas não conseguiram resgatá-lo. No caso dela, a mensagem de alerta chegou quando o marido se tentava salvar, em vão.
Idosos afogados em casa
Outra pessoa também relata a morte da mãe em Catarroja, dizendo que ligou às 19.10 horas à mulher que cuidava da mãe para informá-la sobre a inundação de uma ravina. Minutos depois, a cuidadora enviou um vídeo para a testemunha para que pudesse ver que já estava a entrar água na casa. Depois de alguns minutos, a cuidadora pediu ajuda novamente, gritando que a sua mãe de 91 anos se tinha afogado e que ela também afogar-se-ia se não chegasse a um lugar seguro.
Num outro caso, a testemunha disse que teve o último contacto com o pai às 19.30 horas, quando lhe ligou para o avisar sobre as enchentes. O pai disse que havia apenas quatro dedos de água, mas, de repente, a comunicação foi cortada e a testemunha não teve mais notícias. No dia seguinte, encontrou o corpo do pai no andar térreo onde morava em Catarroja.
Os filhos de outra vítima dizem que encontraram o corpo da mãe a flutuar em casa. Falaram com ela entre 20.30 horas e 20.45 horas, quando havia quatro dedos de água na casa, e acreditam que a mulher tentou subir ao terraço superior, porque havia uma marca de mão na parede, mas escorregou. A idosa costumava jantar por volta das 20.15 horas e havia sobras na mesa.
Detritos e garrafas de butano
Uma das vítimas morreu em Benetússer depois de descer para tirar o carro da garagem às 19 horas, quando ainda não chovia, mas ficou preso na rua. A mulher conseguiu falar com ele às 20.58 horas. Segundo o depoimento, conseguiu agarrar-se a um corrimão, mas a água arrastava detritos e botijões de gás, o que fez com que se soltasse e fosse levado pela corrente para uma garagem. Os vizinhos ouviram-no a pedir ajuda durante 40 minutos.
Os pais das crianças de Torrent que morreram na enchente também estão envolvidos no processo. Naquela ocasião, o pai estava sozinho com os filhos em casa quando um muro "estourou" por causa da água e ele ficou agarrado a uma árvore com hipotermia durante três horas. Sofreu hipotermia e infeções nas pernas que exigiram cirurgia.
Mobilidade reduzida e enchentes em "décimos de segundo"
Outros depoimentos revelam momentos vividos em comunidades onde, em alguns casos, pessoas com mobilidade reduzida ou afetadas por algum tipo de doença morreram nos andares térreos das casas sem conseguirem ser elevadas aos andares superiores em cadeiras para auxiliar no transporte. Neste caso, uma testemunha conta que, às 19 horas, havia casas cheias de água e que, durante cinco dias, ninguém apareceu para socorrê-las. No caso da mãe, que morreu numa cadeira, a filha alega que poderiam tê-la levado para outro andar "com o tempo".
Outra mulher explica que a mãe morreu em casa enquanto o pai teve de ser hospitalizado por hipotermia, hematomas e pneumonia depois de sobreviver agarrado a uma estante de livros. O homem está agora numa casa de repouso porque não tem onde morar. Segundo ele, a água em Massanassa atingiu dois metros por volta das 19 horas.
Um morador de Paiporta conta que os amigos lhe enviaram uma mensagem a avisar para a enchente às 19.15 horas. Naquela altura, não havia mais de meio metro na rua, mas em três minutos, chegou a meio metro, e em 15, "mais de dois". O pai morreu e o seu corpo só foi encontrado dez dias depois. Ao lado do corpo dele, havia mais três.
Na zona de Font del Sapo, em Torrent, a água subiu metros "em décimos de segundo", conta o filho de um casal falecido, que explica que, com a água, vieram árvores e pinheiros que derrubaram a casa.
Manifestações em Valência
A demora no envio do alerta da proteção civil é das maiores críticas que são feitas desde 29 de outubro às autoridades em relação à gestão do temporal e das inundações que provocou. O principal alvo dos protestos e das críticas tem sido o Governo regional valenciano, liderado por Carlos Mazón, do Partido Popular, mas nas manifestações que têm sido convocadas nos últimos meses ouviram-se também críticas ao executivo central, que tem à frente o socialista Pedro Sánchez.
Nas manifestações em Valência, convocadas por uma plataforma de centenas de entidades, desde associações a sindicatos, sempre sob o lema "Mazón demissão", já saíram à rua dezenas de milhar de pessoas: 130 mil em 9 de novembro, 100 mil em 30 de novembro, 80 mil em 29 de dezembro e 25 mil em 1 de fevereiro, segundo dados da Delegação do Governo (a entidade que autoriza os protestos e é responsável por acionar um dispositivo de segurança).
Mazón tem estado permanentemente sob o foco das críticas por causa dos alertas no dia do temporal e pela resposta das autoridades nos dias que se seguiram.
O presidente regional tem também sido criticado pelas explicações que tem dado, em especial sobre onde estava e a sua atuação no dia 29 de outubro, tendo já avançado com diversas versões ou informações novas, em relatos que críticos e outras vozes dizem ser contraditórios.
Sobre a situação no terreno, o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, reconheceu no final de janeiro, três meses após as cheias, que há ainda "muito por fazer" na reconstrução das áreas afetadas, "uma corrida de fundo" e "um trabalho titânico" em que "só foram dados os primeiros passos".