África luta por mapas mais justos
A União Africana ressuscitou um debate há muito ecoado, num apelo para o Mundo se deixar de guiar por mapas com a projeção de Mercator e abraçar outras que representem de forma justa e realista as proporções de África. O JN falou com um dos criadores da alternativa mais consensual: a projeção Equal Earth. Texto de Inês Moura Pinto
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A campanha Correct the Map, apoiada pela União Africana, pretende, como o nome indica em inglês, corrigir o mapa-múndi para uma representação mais realista, já que a usada atualmente distorce significativamente as dimensões de vários continentes. África é maior do que aparenta e quer um desenho justo ao seu tamanho.
As críticas à projeção de Mercator já não são de agora. A iniciativa, liderada pelas organizações "Africa No Filter" e "Speak Up Africa", vê a má representação cartográfica como o estratagema de desinformação mais antigo do Mundo. Um legado colonial que reflete como o Mundo vê o continente.
"Pode parecer que é só um mapa, mas na realidade não é", disse à agência Reuters a vice-presidente da comissão da União Africana, que reúne 55 estados-membros. Selma Malika Haddadi argumentou que estereótipos como a falsa impressão de que África é "marginal" influenciam os média, a educação e as políticas. Para a diplomata, o apoio à campanha alinha-se com o objetivo de reclamar a posição de África no panorama global.
Mapa de África de 1595 do "Atlas Sive Corsmographicae Meditationes" por Gerardus Mercator
Foto: Leemage via AFP
"A projeção de Mercator já não é muito usada para fazer mapas de parede. A comunidade cartográfica afastou-se mesmo dela no último meio século", revela ao JN Tom Patterson, um dos criadores da projeção Equal Earth, defendendo-a como uma boa alternativa por mostrar todos os países e continentes nas suas proporções relativas.
Mudar o mapa é mudar o paradigma. É corrigir a narrativa e empoderar novas gerações. "Uma perspetiva realista leva a um Mundo mais informado, e a melhores processos de tomada de decisões, particularmente para os africanos", defende a comunicação da campanha. O argumento é partilhado pelo designer da Equal Earth: "Um aluno em África vai olhar para um mapa da Equal Earth e ter uma visão mais equilibrada do lugar de África no Mundo, o que é algo importante."
Cabem 14 Gronelândias em África
O caminho para a mudança passa por sensibilizar governos e organizações internacionais - como as Nações Unidas e o Banco Mundial - a adotarem a Equal Earth. África é o segundo continente com maior área do Mundo e casa para mais de mil milhões de habitantes. Nesta projeção, o continente africano ensombra a Europa. Tem quase três vezes o seu tamanho, mas tal nunca seria percetível se se tratasse de um mapa Mercator.
O tamanho importa, porque diminuir o continente é desvalorizar o seu potencial. Livre dos grilhões do passado, África permanece refém de uma perspetiva colonialista quando, na realidade, ocupa 30,37 milhões de quilómetros quadrados - uma área onde cabiam os Estados Unidos da América, a China, a Índia e a maioria da Europa.
Se olharmos para um mapa de Mercator, depreendemos que a Gronelândia ocupa praticamente o mesmo espaço no Mundo que África. Isto não é real. Na verdade, a área de África equivale a 14 vezes a área da Gronelândia. Esta distorção acontece porque a projeção de Mercator alonga as latitudes maiores e estreita a faixa equatorial - um dano colateral da prioridade em aprimorar a navegação marítima a partir da Europa há cinco séculos. O Norte é representado como vasto e central, enquanto o Sul é periférico e marginal: a Europa e a América do Norte esticam; África e a América do Sul encolhem.
A alternativa igualitária
Em 2017, quando as escolas públicas de Boston anunciaram que iriam passar a usar mapas com a projeção de Peter, em alternativa à de Mercator, Tom Patterson - a mente por detrás do design gráfico da Equal Earth - percebeu que estava na altura de desenvolver uma opção melhor. Durante décadas, a projeção de Peter posicionou-se como a alternativa fiável, mas a comunidade de cartografia, à qual Tom pertence, rejeitou-a repetidamente.
Assim nasceu a Equal Earth, uma projeção de área equivalente, fruto do esforço multidisciplinar de três amigos: Tom Patterson, no design, Bernhard Jenny, na programação, e Bojan Šavrič, na matemática e geodesia. Basearam-se na famosa projeção de Robinson, com as laterais arredondadas e as linhas de latitude retas, mas foram rigorosos quanto às áreas equivalentes.
O mapa com a projeção da Equal Earth foi recentemente traduzido para português por um voluntário
Foto: Equal Earth
Foi desenhada principalmente para mapas impressos de parede. "Ironicamente, a projeção de Mercator é a melhor para mapas interativos web. É por isso que a Google, a Apple, o Bing e o OpenStreetMap usam a projeção de Mercator", esclarece Patterson.
Em 2018, o Google Maps trocou a projeção de Mercator por uma visão global 3D na sua versão para computador, embora os utilizadores possam sempre regressar à anterior. Contudo, a decisão progressista não chegou à aplicação móvel.
Acontece que, numa projeção de Mercator, ao aproximarmos o mapa, a forma é preservada. Isso não sucede numa projeção como a da Equal Earth. "Se fizermos zoom em Lisboa e existir um semáforo, na projeção de Mercator vai ser um círculo perfeito; enquanto noutras vai parecer um oval esmagado", exemplifica. Contudo, a vista geral do Mundo na de Mercator não é a mais correta - o que levou a Google e a Apple a mudarem para um globo. "É uma forma muito melhor de mostrar a Terra inteira", reconhece.
A projeção está lentamente a ganhar adesão, mas o designer não consegue precisar quantas entidades a usam. A NASA é uma delas. A agência espacial norte-americana usa a Equal Earth em visualizações de dados científicos. E também já serviu de base para algumas publicações da National Geographic. "Estou muito contente por a União Africana nos ter apoiado. Dá muita força a este projeto que criámos", partilha.
O conservadorismo das editoras atrasa a globalização destes mapas. Patterson explica que existe uma hesitação em publicar novos mapas. As editoras priorizam a rentabilização de mapas já existentes, que deram muito trabalho a desenhar. "Eu acho que ao longo da próxima década vamos ver cada vez mais editoras de mapas a adotarem a Equal Earth quando fizerem a revisão dos seus mapas", antecipa.
A Equal Earth chega a aproximadamente 60% da população da Terra e já está disponível em Português, graças à tradução por um voluntário. A União Africana deverá adotá-la oficialmente em fevereiro, quando os líderes se reunirem na Etiópia.
Da navegação às salas de aula
A projeção de Mercator foi traçada no século XVI pelo cartógrafo flamengo que lhe dá nome, Gerardus Mercator, em plena época dos Descobrimentos. Nasceu da necessidade de ajudar os navegantes europeus a chegarem mais facilmente a bom porto nas suas conquistas marítimas. Manteve-se a referência cartográfica e desde então que molda a forma como vemos o Mundo em duas dimensões - dos mapas na escola às aplicações no telemóvel.
Retrato de Gerardus Mercator de 1574
Foto: Wikimedia Commons
O problema não são tanto as incongruências da projeção, mas antes a sua aplicação em áreas para as quais não foi projetada. De grosso modo, consiste numa transformação plana, em duas dimensões, de um planeta que sabemos ser esférico. É, portanto, natural que características como a área e a forma não sejam preservadas nesse processo drástico.
Apenas a direção é conservada. E foi precisamente para isso que o mapa foi inventado. Em 1569, a prioridade de Gerardus Mercator era a navegação em linha reta no mar, usando a latitude e a longitude.