O tão aguardado relatório da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) concluiu, precisamente, que se deveria cessar qualquer atividade militar nas imediações da central nuclear de Zaporíjia - independentemente de qual país é o malfeitor. No entanto, a discussão mantém-se envolta em acusações mútuas: a Rússia critica que a AIEA não responsabilize a Ucrânia; a Ucrânia saúda a menção de equipamento militar russo na central. Nem a agência das Nações Unidas dispõe de autoridade para atribuir culpados após uma visita condicionada pela boa vontade do exército russo.
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"Estamos a brincar com o fogo, e algo de muito catastrófico pode acontecer", disse, numa conferência do Conselho de Segurança da ONU na terça-feira, o líder da expedição até à maior central nuclear da Europa, citado pelo jornal norte-americano "The New York Times". Rafael Grossi relatou que os cientistas ficaram "gravemente preocupados" com as condições encontradas, e apelou à criação de uma zona de cessar-fogo em torno de um gerador ucraniano que corre grandes riscos.
Há semanas que residentes em Zaporíjia, tanto em áreas controladas pela Ucrânia como pela Rússia, tentam fugir de um possível desastre nuclear. As estradas que ligam a zona ocupada pelas forças russas até ao território ucraniano - o trajeto feito pela equipa da AIEA para chegar à central - têm-se tornado perigosas devido a bombardeamentos. Na terça-feira, a primeira-ministra ucraniana, Iryna Vereshchuk, pediu a facilitação de corredores humanitários para estas pessoas, exigindo que ambos os exércitos cessassem os ataques. A Rússia negou.
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O complexo nuclear de Zaporíjia, sob domínio russo desde março, tem vindo a sofrer sucessivos golpes: os sistemas de refrigeração do material nuclear estão em risco, as redes energéticas estão debilitadas e os funcionários ucranianos (reféns há meses) têm dificuldade em realizar devidamente as suas funções entre bombardeamentos.
Na terça-feira, os inspetores da AIEA reportaram a presença de material militar russo dentro do complexo, bem como danos em edifícios que abrigam combustível nuclear em bruto e resíduos radioativos. Os operadores da central têm acesso negado a algumas partes do complexo, nomeadamente às piscinas de refrigeração, e o próprio centro de emergência no local foi comprometido e é, agora, usado por militares russos.
São os relatos preliminares contemplados no relatório da agência, que instalam uma sensação de impotência no Ocidente. Não só nada podem fazer os inspetores da AIEA para travar os bombardeamentos, como foram forçados a abrigar-se durante a visita. O relatório incitou à "paragem imediata" dos ataques pois, embora ainda não tenha espoletado uma emergência nuclear, "continua a representar uma ameaça constante à segurança nuclear, com potencial impacto em funções críticas dos sistemas de segurança".
Também a Ucrânia voltou a alertar: danos na zona ativa do reator teriam "consequências não só na Ucrânia, como definitivamente além das suas fronteiras". O país partilha fronteiras terrestres com a Moldávia, Roménia, Hungria, Eslováquia, Polónia, Bielorrússia e Rússia. O chefe da agência de segurança nuclear da Ucrânia, Oleg Korikov, garantiu, numa conferência de imprensa esta quarta-feira, que o grande risco é a central ficar sem combustíveis fósseis para alimentar a eletricidade dos sistemas de segurança - já que foi desligada da rede elétrica na segunda-feira e ficou sem fornecimento interno.
Ataques e contra-ataques acusatórios
A agência disse estar pronta para consultar os dois lados em relação à criação de uma zona de segurança. O secretário-geral da ONU, António Guterres, frisou, na mesma conferência, que "como primeiro passo, as forças russas e ucranianas devem comprometer-se a não participarem em qualquer atividade militar em direção ao complexo ou partindo dele". A Rússia ainda não se pronunciou sobre uma possível zona de segurança, mas criticou a desresponsabilização da Ucrânia.
Vasily Nebenzya, embaixador da Rússia na ONU, congratulou a decisão de dois inspetores da AIEA permanecerem no complexo para monitorizarem as condições e disse ao Conselho de Segurança que a visita deixou claro que "a central está a funcionar normalmente e não há ameaças internas", sendo que o verdadeiro perigo são "os ataques das forças ucranianas".
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Já o embaixador da Ucrânia, Sergiy Kyslytsya, afirmou que a visita foi "apenas o primeiro passo". E reiterou: "A única maneira de remover, de vez, as ameaças nucleares resultantes da presença ilegal da Rússia na central é com a retirada do armamento e das tropas russas".
Esta quarta-feira, o presidente russo, Vladimir Putin, negou a existência de qualquer material militar na central, e voltou a rejeitar a tese de a Rússia ser responsável pelos bombardeamentos. "[A AIEA] é uma organização internacional muito responsável. Estão, claro, sob pressão de países com que trabalham, os Estados Unidos e a União Europeia, e não podem dizer que os ataques vêm do lado ucraniano", defendeu Putin no Fórum Económico Oriental, em Vladivostok, segundo a agência de notícias AFP.
Por sua vez, o presidente ucraniano já tinha comentado na terça-feira que deveria ser atribuida autoridade à AIEA para "forçar a Rússia a desmilitarizar o território" e devolver o controlo da central à Ucrânia. Volodymyr Zelensky elogiou, também, o reconhecimento, pela agência, de material militar russo nas instalações e da pressão exercida sobre os funcionários da central.