Mãe e filhas deixaram Chernihiv, na Ucrânia, no dia em que a guerra começou. Fizeram quase quatro mil quilómetros de carro até se sentirem em segurança, em Portugal.
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Na sua cabeça, Alexandra Albear, de 18 anos, ainda vê Chernihiv, a cidade no norte da Ucrânia de onde é natural, tal e qual como a deixou no passado dia 24, quando a Rússia invadiu o país. Mas as imagens que lhe chegam mostram-lhe que tudo mudou. Escolas, hospitais e casas foram bombardeados nos últimos dias. Incluindo o apartamento onde vivia com a família. Desde a semana passada, Alexandra, a irmã, Veronika Kozlova, de 15 anos, e a mãe, Alla, de 44, estão em segurança, em Aveiro, onde foram acolhidas por uma família de portugueses. O pai ficou lá. Porque tinha que ficar e porque quis.
"Decidimos partir na manhã em que começou a guerra. Não estávamos à espera, mas sabíamos que podia começar a qualquer dia. Por isso, tínhamos os nossos documentos prontos e combustível para o carro. Empacotámos algumas coisas, muito rapidamente, e saímos", recorda Alexandra, estudante universitária.
Naquele momento, Chernihiv ainda não estava a ser bombardeada - apesar de, hoje, ser uma das cidades mais destruídas pelas tropas russas -, mas já se ouviam explosões ao longe. "Tivemos medo. Principalmente porque não sabíamos se a rota que estávamos a fazer era segura nem o que estava a acontecer aos nossos amigos e familiares, que tinham ficado na cidade", conta a jovem.
O primeiro destino foi o oeste da Ucrânia, que sabiam ser uma zona segura - e que ainda o é, por estes dias. Daí, cruzaram a fronteira com a Roménia, rumo ao desconhecido e sem destino certo. "A minha mãe ligou a uns amigos ucranianos que vivem em Portugal. Eles ligaram a amigos, que ligaram outros amigos e acabámos por chegar ao Carlos e à sua família", conta a jovem, para quem "ainda é difícil acreditar que isto está a acontecer".
Das primeiras a chegar cá
"Carlos" é Carlos Dias, de Aveiro. Que quando recebeu um contacto de um conhecido seu, um empresário romeno que lhe falou de uma família que estava a fugir da guerra e que queria vir para Portugal, não hesitou. Disse logo "sim", sem saber quem eram nem quantas pessoas eram.
Os amigos de Alla rumaram de carro até à Roménia, para fazerem com ela e com as filhas a viagem para Portugal e, assim, se revezarem na condução do carro que a família trazia. Ao longo de quase cinco dias, fizeram quase quatro mil quilómetros. As três refugiadas terão sido das primeiras a chegar ao nosso país. E Alexandra recorda que, ao entrar em solo luso, sentiu um misto de emoções. "O nosso pensamento estava na nossa casa, no nosso pai, familiares e amigos. Mas as pessoas cá serem tão amigáveis fez com que nos sentíssemos bem aqui. Estamos muito agradecidas", deixa claro.
Carlos Dias cedeu à família a sua casa de férias, a poucos quilómetros de Aveiro. "Quisemos que elas tivessem ao máximo a sua independência, o seu ritmo e os seus horários. O seu estilo de vida aproximado ao normal, no fundo. Estamos a tentar ao máximo que se sintam confortáveis", frisa o aveirense, que já as conseguiu ajudar a tratar da documentação necessária e que não se tem poupado a esforços para as integrar. Mas não ficou por aí.
Juntamente com amigos, de várias áreas profissionais, entre as quais a advocacia, Carlos faz parte de um grupo informal que se criou para trazer mais refugiados ucranianos para Portugal. "Criámos uma rede de transportes na Roménia e quem vem, já vem legalizado. E temos dezenas de famílias e de casas para acolher muita gente. Mas vamos confirmar, pessoalmente, quem são todas essas famílias, pois não queremos que ninguém se aproveite destas pessoas, que estão extremamente fragilizadas", explica. A caminho da Roménia está já, por estes dias, um autocarro que foi custeado por um empresário português, e que regressará, essencialmente, com crianças. "Algumas órfãs, outras abandonadas", conta Carlos, a quem os olhos húmidos impedem de terminar a frase. Aceitou contar a sua experiência - com o consentimento de Alla e das filhas - para que, por um lado, "na Ucrânia vejam que é seguro vir para Portugal". Por outro, "para incentivar mais famílias portuguesas a abrir as suas portas".
Planear um futuro incerto
O pai de Alexandra e de Veronika mantém-se no oeste da Ucrânia, "em segurança", contam, onde está "a ajudar quem precisa de abrigo naquela zona e quem quer sair do país". Ficou porque a lei marcial o impedia de sair, mas também porque "queria ficar para ajudar os familiares e amigos". Falam com ele todos os dias, tal como com familiares e amigos que ficaram e que lhes fazem chegar imagens e notícias devastadoras. Aquelas que elas tentam não ver em Portugal, seja nos jornais ou na televisão. Até porque Carlos Dias instituiu que, perto daquela mãe e das duas jovens, na sua casa "não se fala em guerra". Prefere antes sorrir ao lembrar que muitos portugueses, quando reparam na matrícula ucraniana do carro de Alla, "apitam, fazem corações com as mãos e dão-lhes força".
Entretanto, mãe e filhas já planeiam o futuro próximo. Alla, que era proprietária de uma agência de viagens, pensa em arranjar emprego e já tem algumas propostas. E Alexandra e Veronika querem continuar os estudos. "É muito difícil dizer alguma coisa sobre o futuro", confessam. Mas têm um desejo: "voltar um dia a casa, quando a situação melhorar".