Filipa, 22 anos, do Porto, acolhe e salva refugiados menores na sua casa em Cracóvia. Grupo "Portugueses na Polónia" já resgatou 50 jovens da fronteira da guerra.
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A vida é tão arbitrária como as lágrimas, mas o destino de Anastácia, 16 anos, foi-lhe talhado logo no nome, é o nome dado àquelas que têm força para ressuscitar. Artur teve que ser resgatado com urgência de Zalischchyky, uma cidade-círculo bordada pelo rio Dniester: daqui a duas semanas vai fazer 18 anos e se ficasse na Ucrânia era um perigo, era instantaneamente atirado para a frente para combater. Viktoriia fugiu de Obukhovichi, Norte da capital Kiev, tem 16 anos e vive em afogo e sufocação: há vários dias que não tem notícias dos pais, que ficaram lá atrás onde a guerra está a estrondar. Que tempo hediondo é este, de dentes frios arreganhados? Hoje é o 24.º dia da guerra da Rússia sobre a Ucrânia.
Filipa Braz levanta-se do sofá da sua sala quentinha e caminha como uma gata em pontas: evita fazer barulho porque as "crianças" estão a dormir. Ela tem 22 anos, é do Porto, vive em Cracóvia, Polónia, desde 2019, trabalha para a Shell, e é a "mãe" daqueles três. Ela sorri, tem espanto e gratidão: ofereceu-se para acolher temporariamente na sua casa os três menores que fogem da guerra e se refugiarão em Portugal. "Somos privilegiados pela vida que tempos e se a temos, temos que retribuir, ajudar, ajudar. Mas é comovente fazermos o Bem, não lhe vou mentir", diz a Filipa, orgulho da mãe Arminda, do pai Carlos, da tia Fátima, da família toda que vê nela bondade a abundar.
Mas isto, como começou? A página de Facebook "Portugueses na Polónia"; criada para ponto de encontro de emigrantes portugueses, está convertida em carta de resgate de refugiados ucranianos. "É tudo iniciativa privada, nós é que pagamos tudo, o coração é todo português", diz o dinamizador Pedro Vilas, analista de mercados financeiros em Cracóvia. "Está a correr espetacularmente bem, já resgatamos 50 menores, já seguiram para Portugal".
A última foi Anastácia, luso-ucraniana, saiu no dia 4 de Poltava, Ucrânia central. O pai e o irmão tiveram que ficar, é a lei marcial, a mãe não saía sem eles dois, também ficou. Mas Anastácia podia deixar a guerra e deixou: demorou quatro dias entre a sua Poltava e Lviv, junto à fronteira, quatro dias sozinha, autocarros, comboios, sem dormir, com fome, a pé. "Chegou exausta. Stressada. Traumatizada. E assustada. Só queria dormir, dormir", diz a Filipa, "e o olhar dela era tão triste". Agora já está com tios e primos no sol de Cinfães do Douro. E já sorri como o colibri.
Quando a invasão russa começou, os Portugueses na Polónia levantaram logo os braços pelas mãos dos dois Andrés, Portugal e Pestana, são dois batedores excecionais, conduzem quilómetros Cracóvia-Lviv-Cracóvia, conduzir, dormir, repetir. Levaram eles o Artur, luso-ucraniano que não queria uma guerra como prenda de anos. Abalado, abatido, inseguro, Artur veio carregado de medo - tanto que pediu para haver uma palavra-passe secreta a dizer por quem o fosse buscar. A palavra que escolheu, ele que não fala português, foi... Ronaldo. Ainda está na casa calorosa da Filipa, deve abalar para Santa Maria da Feira, onde tem uma madrinha.
Viktoria, que foi trazida pelo irmão até à fronteira de Medika, há-de sair para Aveiro, onde tem família emprestada dos tempos do programa Verão Azul. Vai ficar aí até a guerra se aclarar. Está tudo bem com ela, está com a Filipa, dorme com os pijamas dela, mas precisa de saber dos seus - e espera que a falta de notícias da família desde Obukhovichi seja só uma baixa colateral de cabos incontinentes de comunicação.