O luto da República Popular de Angola pela morte de José Eduardo dos Santos é só quase o institucionalmente devido pelo falecimento de um ex-chefe de Estado.
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Tanto assim é que a própria família resiste a trasladar o corpo para Luanda, porque as prometidas exéquias de Estado serão a catarse nacional e o enterro de um regime instalado por ação e omissão do homem que governou o país durante 38 anos (1979-2017), em proveito dele, do da família e dos círculos de amigos mais próximos. A sede de petróleo e diamantes foi a origem da cobiça. E Portugal esteve e ainda está no centro de uma vasta rede internacional de corrupção.
Em princípios de 2020, a Justiça angolana prometeu "todos os possíveis" para levar a julgamento a filha de 49 anos (20-4-1973) acusada de desviar mais de mil milhões de dólares dos cofres do Estado e das empresas públicas. Só que "A Princesa", como chamavam a Isabel dos Santos, vive há dois anos entre o Dubai e Londres e não está para comparecer em Luanda.
Filha de mãe russa - do primeiro matrimónio de José Eduardo dos Santos, contraído quando o jovem militante do MPLA estudou na Universidade de Baku - e nascida na República Socialista Soviética do Azerbaijão, Isabel tem passaporte russo e também será detentora de documentos de viagem do Reino Unido e da República Democrática do Congo, nacionalidade assimilada pelo casamento com Sindika Dokolo, empresário do antigo Zaire, falecido em outubro de 2020, quando praticava mergulho no mar do Dubai.
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Em toda esta dispersão, a mulher mais cosmopolita e rica de África (património de 2,9 mil milhões, segundo a revista "Forbes") é também acusada de percorrer e decalcar os rastos que lhe permitiram dissimular avultados recursos de empresas públicas angolanas, incluindo a Endiama (diamantes) e a Sonangol (petróleo), que dirigiu, por nomeação do pai, até ser demitida, em novembro de 2017, pelo novo chefe de Estado, João Lourenço, que prometeu purgar a administração pública e desembaraçar as empresas do Estado dos próximos do predecessor.
A zona franca da Madeira foi só uma das passagens no circuito de offshores que a empresária e o clã Dos Santos usou para fazer transitar operações subterrâneas e sem controlo fiscal, identificadas pela Justiça portuguesa. O "Luanda Leaks" ajudou à exposição: holdings, testas de ferro, esquemas cruzados e muito trânsito de operações financeiras através do sistema bancário português.
A Justiça angolana calcula que estes movimentos mais ou menos subreptícios por Portugal atingiam cerca de 1500 milhões de euros. A investigação das autoridades portuguesas deu um intrincado e sofisticado esquema de transferências e abriu investigação, por branqueamento de capitais e fraude fiscal: em 2020, o Ministério Público identificou diversas transações bancárias, ocorridas até 2014 e com origem em empresas públicas de Angola, num total de 573 milhões de euros.
Pela mesma altura, nos inícios de 2020, Angola solicitou às autoridades portuguesas operações de arresto de empresas participadas por Isabel dos Santos, na NOS, na GALP, na Efacec, na BIC ou no Eurobic, entre dezenas de outras empresas. Em andamento da mesma carta rogatória de Luanda, o MP suspendeu movimentações das contas bancárias controladas direta ou indiretamente pela empresária. Muitas dessas transferências destinavam-se a escritório de advogados no Reino Unido.
Cimenteiras, operadoras de telecomunicações, a grande distribuição alimentar e a própria banca foram os negócios mais apetecidos pela família Dos Santos. Na sequência do "Luanda Leaks", o Consórcio Internacional de Jornalismo de Investigação identificou quatro centenas de empresas às quais Isabel dos Santos está ou esteve ligada em 30 anos, incluindo 155 portuguesas e 99 angolanas. No final de 2019, detinha ou participava em 169 sociedades em 22 países, com Angola (81) e Portugal (22) à frente. A maior parte (87) era da área financeira.
Entre outras revelações do "Luanda Leeks" destaca-se um esquema de desvio de 115 milhões de dólares da petrolífera estatal Sonangol para uma conta sua no Dubai e o esvaziamento de todo o saldo da companhia numa conta do EuroBic Lisboa (da qual Isabel era a principal acionista) no dia seguinte a ser exonerada por João Lourenço. Sempre segundo a mesma investigação jornalística, quatro portugueses estavam, à data, envolvidos nos esquemas financeiros: Paula Oliveira (administradora não-executiva da NOS e diretora de uma empresa offshore no Dubai), Mário Leite da Silva (CEO da Fidequity, empresa com sede em Lisboa detida por Isabel dos Santos), o advogado Jorge Brito Pereira e Sarju Raikundalia (administrador financeiro da Sonangol).
Em 31 de dezembro de 2019, o Tribunal de Luanda decretou o arresto preventivo de contas bancárias pessoais de Isabel dos Santos, do marido, Sindika Dokolo, e do português Mário da Silva, além de nove empresas nas quais detinha participações, à ordem de um processo sobre negócios com o Estado angolano, através das empresas públicas Endiama e Sonangol.
De tudo isto sobre o retrato mais doloroso de todos: o World Poverty Clock regista que 18 milhões de angolanos (54% da população total do país) vive em pobreza extrema, com menos de 1, 90 dólares (1,81 euros) por dia.