Um político nigeriano e a mulher foram condenados por tráfico de órgãos, no Reino Unido. O veredicto, primeiro de sempre ao abrigo da Lei da Escravatura Moderna, resultou, ainda, na condenação de um médico da Nigéria, também ele beneficiário de um transplante ao arrepio da lei.
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Ike Ekweremadu, antigo vice-presidente do Senado da Nigéria, a mulher, Beatrice, e o médico Obinna Obeta foram considerados culpados de facilitar a viagem de um jovem nigeriano para Inglaterra com o fim de o usar como dador de um rim para a filha do antigo governante nigeriano, Sonia Ekweremadu. A jovem chorou em tribunal quando soube do caso e saiu ilibada. A sentença será lida a 5 de maio.
O procurador do Ministério Público (MP) britânico Hugh Davies disse que o casal Ekweremadu e o médico trataram o dador como "um bem dispensável - repositório de peças sobresselentes"; considerou que os arguidos entraram "numa transação comercial fria e desumana" com a vítima, um jovem de 20 anos que ganhava a vida, de miséria, a vender capas de telemóvel nas ruas de Lagos, na Nigéria.
O dador foi apresentado, falsamente, numa unidade privada de cuidados renais como primo de Sonia, na tentativa de convencer os médicos a fazer um transplante de rim para a filha do antigo senador nigeriano, que padecia de uma doença renal que a obrigou a abandonar os estudos na Universidade de Newcastle, no Reino Unido. Uma secretária do hospital foi paga para servir de tradutora. Segundo a acusação, Ike Ekweremadu "concordou em recompensar alguém por um rim para a filha - uma pessoa em situação de pobreza e de quem se distanciou sem questionar, e com quem, para própria proteção política, não quis contacto direto".
O que Ike Ekweremadu "concordou em fazer não foi simplesmente conveniente para o interesse clínico da filha, Sonia, foi exploração, foi criminoso", disse o procurador. "Não é defesa dizer que agiu por amor à filha. As necessidades clínicas da filha não podem ser atendidas à custa da exploração de alguém em situação de pobreza", acrescentou Hugh Davies.
Ekweremadu negou as acusações e disse que tinha sido vítima de um esquema, enquanto a mulher afirmou desconhecer a alegada conspiração. O médico argumentou que não houve qualquer oferta pecuniária ao dador, dizendo que o homem, de forma altruísta, estava disposto a doar um rim à filha do antigo vice-senador nigeriano. Ambos admitiram ter afirmado falsamente que o homem era primo de Sonia no pedido de visto para entrar em Inglaterra e nos papeis apresentados no hospital.
Obeta, ele próprio um doente renal, tinha beneficiado do esquema de tráfico de órgãos, que se presume representa 10% dos transplantes a nível mundial. Em 2021, o médico contratou um jovem vendedor de rua de Lagos, que lhe vendeu um rim. O médico apresentou papéis falsos no hospital, atestando que a doação era feita de livre vontade e que era primo do dador.
A operação, realizada em julho de 2021, foi bem-sucedida, mas deixou Obeta com uma dívida de cerca de 25 mil euros. Impossibilitado de trabalhar no Reino Unido como médico, virou-se para os Ekweremadu, sabendo que a filha do antigo vice-senador precisava de um transplante renal. Através do antigo dador, angariou um outro vendedor de rua em Lagos para doar um rim à filha do ex-senador.
Os médicos têm de rever as linhas orientadoras para níveis mais restritos
Mensagens de WahtsApp mostram que Obeta cobrou 4,5 milhões de nairas (cerca de 7800 euros) para agir como intermediário entre o doador e a família de Sonia. Ekweremadu terá acordado pagar o dinheiro pedido pelo médico, mais o passaporte, o visto e a viagem para Londres.
Para dar credibilidade à história, o dador foi registado com a morada dos Ekweremadu no pedido de visto e tirou fotografias com Sonia num restaurante em Londres, para acentuar a narrativa dos laços familiares. Em fevereiro de 2022 foi apresentado na unidade de cuidados renais do hospital Royal Free, em Londres, para um transplante privado, por cerca de 77 mil euros.
O médico designado, Peter Dupont, considerou que o potencial doador não percebia bem as implicações da operação e teve também dúvidas sobre a relação de parentesco alegada entre Sonia e o dador. Não fez o transplante, mas também não denunciou o caso. "Somos médicos, não somos o FBI ou a CIA. Não temos meios para investigar as pessoas", justificou-se.
O caso seria denunciado em maio de 2022, três meses após a tentativa de transplante. E foi a vítima a pedir ajuda à polícia, quando sentiu que poderia estar na calha para outra doação, depois de ser avaliado por um médico do serviço nacional de saúde britânico, o NHS, especializado em transplantes renais.
"Se há uma lição apreendida aqui, é que os médicos têm de rever as linhas orientadoras para níveis mais restritos", disse Hugh Davies. Notando que antigo político, um advogado de sucesso na Nigéria, foi fundador de uma associação de combate à pobreza e participou na redação de leis contra o tráfico de órgãos, o procurador considerou que Ekweremadu denotou "desonestidade e hipocrisia" ao tentar "comprar" um dador para a filha.
"Os arguidos demonstraram um ulterior desrespeito pelo bem-estar da vítima e usaram a considerável influência que têm para um alto grau de controlo, aproveitando o limitado conhecimento da vítima sobre o que se passava", disse Joanne Jakymec, a procuradora-chefe da Coroa britânica. "Uma conspiração horrível para explorar a vulnerabilidade da vítima ao traficá-la para o Reino Unido com o objetivo de transplantar um rim", acrescentou.
Esther Richardson, do comando contra a exploração e a escravatura moderna da Polícia Metropolitana de Londres, elogiou a coragem da vítima e a sentença. "Esta condenação é um marco para o futuro e congratulamos a vítima pela coragem de falar contra estes criminosos", disse.
Existe um nível de complacência relativamente aos riscos do tráfico de órgãos
Dominique Martin, professora de ética em saúde da Universidade Deakin da Austrália que estuda o tráfico de órgãos, sublinhou uma das fraquezas do processo. "A confiança nos intérpretes - corruptos ou não - pode não ser capaz de facilitar uma avaliação eficaz", disse, ao jornal "The Guardian"..
A maioria dos casos relatados de tráfico de órgãos ocorre no setor privado, onde há um potencial conflito de interesses nas decisões de aprovação de transplantes, acrescentou Martin. A especialista pediu aos médicos que denunciem quaisquer suspeitas de tráfico. "Relatar preocupações pode ser um passo essencial para proteger o potencial doador, alguém em sério risco", disse, ao sublinhar que o caso destacou a necessidade de uma verificação robusta por parte de hospitais e reguladores de saúde.
"Existe um nível de complacência relativamente aos riscos do tráfico de órgãos acontecer dentro das nossas fronteiras. Os programas de rastreio podem não ser tão fortes como supomos ou implementados de forma tão consistente como seria de esperar", disse.
"Temos de garantir que os controlos e equilíbrios em vigor no Reino Unido são robustos, para que os transplantes de dadores vivos não avancem onde tenha havido qualquer coerção ou incentivo financeiro", disse Peter Friend, consultor hospitalar, professor de transplantação e membro do conselho do Colégio Real de Cirurgiões, também ao jornal "The Guardian".
Segundo o mesmo jornal, o Royal Free, justificou-se em comunicado. "A orientação nacional para a avaliação clínica do transplante de dadores vivos, que se aplica tanto nos doentes privados como no NHS, foi seguida neste caso e foi tomada a decisão de não avançar com o procedimento".