Bernard-Henri Lévy: "No fim de contas, o destino de uma guerra é decidido pelo povo"
Camisa branca que parece acabada de comprar, fato cinzento de corte elegante. A fotografia é a habitual, mas desta vez traz o semblante carregado. Nos poucos dias que passou na capital ucraniana, Bernard-Henri Lévy (BHL) desdobrou-se em contactos com governantes e movimentos sociais para promover o novo filme que dedicou à Ucrânia, "Slava Ukraini" depois de ter lançado "Porquê a Ucrânia?" Ao fim de dois dias de correria, o cansaço é visível no rosto de BHL.
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Mas neste frio fim de tarde, em Kiev, outra coisa abalou o francês minutos antes do início da entrevista com a TSF. "Recebi uma carta do meu amigo Mikheil Saakashvili. "Veja", conta enquanto vai lendo as duas páginas. É sobre o estado de saúde do político georgiano. Saakashvili conta que está a definhar. Em menos de um ano perdeu 50 kg. Pesa agora 65. O ex-presidente da Geórgia está preso e a carta foi escrita antes desta entrevista. Nela, Mikheil Saakashvili acusa "um prisioneiro ao serviço de Putin" de o ter envenenado. O filósofo decifra, por vezes com dificuldade, as letras deixadas no papel pelo punho do político georgiano, três dias antes.
Nada mudou desde que, há 15 anos, o francês visitou Tbilisi perante a ameaça russa. Em tom de despedida, alerta ainda para o aviso que Maria Zakharova terá deixado: "O meu fim é o mesmo que espera Zelensky." O georgiano pede ainda ao amigo francês que não cale as torturas que garante sofrer.
Depois da Geórgia, em 2008, as atenções do Kremlin e de Bernard-Henri Lévy mudaram-se para a Ucrânia. Ficou famoso o discurso do filósofo na praça Maidan, em 2014. No ano passado visitou a Ucrânia por 12 vezes. Esteve em Odessa, filmou a Libertação de Kherson, foi ao Leste, esteve com os soldados ucranianos nas trincheiras. Desde a primeira hora apoia o presidente Zelensky. Acredita na vitória ucraniana e na implosão das tropas do Kremlin, mas avisa que a reconstrução não será uma tarefa fácil.
Há um ano, estava muito confiante numa vitória ucraniana. Mantém essa convicção?
A Rússia não pode ganhar. De nenhuma forma. A única questão é perceber quanto tempo vai demorar. Porque cada dia de guerra tem um custo muito elevado em termos de vidas humanas, em termos de famílias destruídas, espíritos destruídos, em termos de destruição geral. Mas claro que a Ucrânia vai ganhar. De certeza. E sabe porque é que a Ucrânia vai ganhar? Por uma razão muito simples que já conhecemos desde a antiguidade. Numa guerra não são os números que contam. Os números não são muito importantes. O que é importante, numa guerra, é a moral, os valores, a razão para combatermos. Quem combate como milícia da Wagner fá-lo por dinheiro, porque estava falido ou porque foi uma forma de sair da prisão. Não combate bem. Quem combate para salvar a própria casa, a família, e o seu país e também por grandes ideais: Liberdade, Justiça, Democracia. Tem muito mais razões para combater. E só pode ganhar. Sabemos isso desde as guerras entre as cidades da Grécia e o império persa. Nas Guerras Médicas contadas por Heródoto, percebemos que eram umas centenas de cidadãos gregos contra dezenas de milhares de mercenários, e soldados pagos dos persas. Os primeiros ganharam.
O que é que está em jogo nesta guerra?
O que está em jogo é, claro, a Ucrânia. Os corpos vivos, as almas vivas da Ucrânia. Mas, além disso, é uma guerra de valores. E é também uma guerra que implica o futuro do continente e, portanto, do mundo. Por outras palavras, de uma forma muito simples: se Putin ganhasse, ou se Putin recebesse uma pequena parte de uma vitória, mesmo um pedacinho, por pequeno que fosse, se recebesse isso, da parte da Ucrânia ou dos aliados da Ucrânia, seria um sinal terrível para o resto do mundo. Para os tiranos do mundo. Significaria que podemos agredir os nossos vizinhos, podemos ocupar parte do seu solo, do seu território, que podemos chantagear o resto do mundo se tivermos a felicidade de ter armas nucleares. E, portanto, ganhámos. Conseguimos a vitória. Imagine por um minuto a oportunidade que seria para a China, para o Irão, para a Turquia, para o Brunei para todas as ditaduras do mundo. Portanto, é crucial que Putin perda. Pela Ucrânia e pelo resto do Mundo.
A Crimeia pode ser esse pedaço de vitória?
Claro. No ponto em que estamos, a Ucrânia não pode perder a Crimeia. Antes de mais, eles não a querem perder. Eles consideram, corretamente, que lhes está garantido pelo direito internacional. Que as Nações Unidas têm o dever político e moral de devolver a Crimeia. Mas a outra razão é a que lhe disse: se a Crimeia permanecer nas mãos de Putin, se Putin puder dizer 'Contra a NATO, contra o resto do mundo, eu consegui manter a Crimeia, que pertence à Rússia, que é uma joia da Rússia'. Significará uma vitória para ele e uma vitória para todos os seus aliados. Por exemplo, o golpe contra Taiwan está novamente em cima da mesa. Se ele mantiver a Crimeia. Podemos prever, facilmente, sem grandes possibilidades de nos enganarmos, que os planos para Taiwan vão ser retirados da gaveta e postos em cima da mesa.
Até agora a Europa tem ajudado a Ucrânia, sobretudo, com armas e dinheiro. Se for preciso pôr mais do que isso... A Europa está preparada?
Ninguém pede soldados. E isto é o que o presidente Zelensky afirma incessantemente. Não são homens. As necessidades são canhões, aviões e armas. Homens eles têm. Jovens e velhos muito corajosos. Homens e mulheres muito corajosos. Há gente de todas as classes sociais a lutar. Não precisam disso. As necessidades deles são armas para equilibrar contra os arsenais gigantescos de Putin.
O senhor é especialista em linguagem. Viu o discurso do Presidente Putin no estado da Nação?
Vi o discurso. Ele parecia um zombie. Honestamente. E se o comparar com os discursos de Zelensky, tão vívidos, vibrantes, cheios de vida... Cansado, mas entusiasta. Se comparar isto com o rígido mumificado 'zombiesco' discurso de Putin... Encerrado na sua Datcha. Incapaz de ir à linha da frente, sem coragem suficiente para aparecer entre as tropas... Que diferença. O mundo está a testemunhar que a valentia e a vida estão do lado de Zelensky e que a cobardia e a morte estão do lado de Putin.
Mas como é que a guerra pode acabar? Só com uma vitória militar da Ucrânia?
O exército russo irá colapsar em algum momento. Porque, no fim de contas, o destino de uma guerra não é decidido por quartéis-generais ou por lideranças políticas. É decidido pelo próprio povo. Pelos soldados, pelos corpos dos homens e das mulheres. Eles decidem. Eles querem lutar? Querem. Ou melhor, eles aceitam combater? Ninguém quer combater. Eles aceitam combater? Aceitam o risco de morrer? Ou, de repente, recusam. E isto é o que irá acontecer na Rússia. Vai acontecer que aquelas dezenas de milhares de homens que são atirados como vagas de carne contra as linhas ucranianas, em algum momento - não sei se será amanhã, daqui por um mês ou seis meses - vão perguntar-se: 'Porque é que nós estamos a fazer isto? Pelo capricho de um homem? Pelo orgulho de um só tirano? E pela vergonha do nosso povo?' Não. Por isso, a minha previsão é que o exército russo irá colapsar por dentro. Não sou especialista em assuntos militares, mas creio que nesse caso teremos uma vitória militar do exército ucraniano.
E o que é que isso pode provocar na vida interna da Rússia?
A Rússia é um país estranho. Nos últimos anos, não tenho ido à Rússia. Estou banido, não posso entrar no país. Estou numas listas de homens a matar, também na Rússia. Quando estive em Odessa, no ano passado, havia nas redes sociais os autodenominados grupos de patriotas a prometer recompensas a quem me matasse. Portanto, não posso ir à Rússia, mas gostava muito, porque lutei durante tanto tempo, na minha juventude, pela liberdade na Rússia, mas enfim... Do que conheço da Rússia, sem lá ter estado nos últimos anos, é importante sublinhar que sei que este ainda enorme país pode ter reações imprevisíveis. Não me posso esquecer de 1988/1989, quando todo o mundo previa que a Rússia não ia mudar. Que estaria debaixo da bota soviética para sempre, que havia um Novo Homem. Homo Sovieticus, criado pelo marxismo/leninismo, que não tinha nada que se comparasse com o género humano democrático. E de repente tudo ruiu. Tudo desapareceu, com muita violência diga-se de passagem. Todo o regime soviético colapsou. Em 1916, há um momento famoso, quando Lenine chora, literalmente, desesperado ao ver nas notícias o Czar Nicolau II aplaudido pela multidão na varanda do Palácio de Inverno. Aplaudido pela multidão. E Lenine pensa: 'É o fim da linha para mim.' - isto em novembro de 1916, poucos meses antes da revolução bolchevique - "Nunca vou conseguir. Perdi o jogo. Acabou.' Poucos meses depois temos esta terrível Revolução de Outubro. Portanto, o que eu quero dizer é que nunca sabemos nada sobre a Rússia. Podem ter acontecimentos imprevisíveis, coisas que ainda podem sempre acontecer.
A Europa, a cultura europeia, podem existir sem a Rússia?
A Europa terá de existir sem a Rússia por algum tempo. Porque esta Rússia que cometeu, permitiu, admitiu, ou apoiou tanto crime contra a Humanidade não será bem-vinda na Europa tão depressa. Vai levar tempo. A Rússia terá de ser responsabilizada pelos crimes cometidos. O povo russo terá de refletir profundamente sobre o que fez, ou aceitou. Terão de se arrepender. Terão de pedir perdão. Terão também de pagar pelo que fizeram. Estamos em Kiev, num país que terá de ser completamente reconstruído. A Rússia terá de pagar isso. Portanto, veremos, mas por agora a Europa terá de viver sem a Rússia. Que continuará distante. E depois, como para a Alemanha depois do nazismo, chegará o tempo, espero. Se a Rússia pagar o preço, o preço moral, o preço político e o preço material. O tempo do perdão pode então chegar.
Vários políticos europeus têm alertado para o risco de uma humilhação russa. Olhando para o fim da Primeira Guerra Mundial, esse argumento é sensato?
Esse era o argumento dos Nazis. Não penso que a Alemanha tenha sido muito humilhada. Não penso que a Segunda Guerra Mundial tenha ocorrido por causa do Tratado de Versalhes. A Segunda Guerra Mundial aconteceu por causa do nazismo. Por causa de uma ideologia construída como um todo e que tinha na sua essência, no seu coração o Wille Zur Macht, a vontade de poder, a vontade de conquista. É uma narrativa Nazi dizer que a guerra foi por causa do Tratado de Versalhes O mesmo acontece agora. Se, que Deus não o permita, mas se houver um conflito de grande escala, será por culpa de alguns países violentos, totalitários, autoritários, que assim o quererão. Espero que isso não aconteça, mas não terá a ver com humilhação. Por agora, só vejo uma humilhação da Rússia, que vem do senhor Putin. Putin é quem tem sujeitado às maiores humilhações o seu próprio país. Imagine-se, por um minuto, na pele de um russo. De um cidadão russo. Foi-lhe prometido orgulho, mas só colhe vergonha. Prometeram-lhe grandeza e só recebe mesquinhez. Foi-lhe prometido liderar um novo império. E tem um país banido. Aliado da Coreia do Norte e o Irão, países eles próprios banidos. Isto é uma humilhação para um cidadão russo. E quem é que causa esta humilhação senão o próprio Putin?
Falava há pouco nas lutas da sua juventude. Hoje a Rússia e a China estão muito próximas. Se essa proximidade aumentar, se for criada uma Nova Ordem mundial, quão perigoso pode ser esse mundo multipolar?
Há o risco de guerra generalizada na Guerra Mundial, o que seja, se a Rússia ganhar novamente. Porque se a Rússia ganhar será um encorajamento, será um sinal será a prova de que a força compensa. De que a força garante alguns lucros. E depois teremos várias emulações entre os tiranos por todo o planeta. A única forma de evitar que a guerra se dissemine é se Putin for derrotado. É a única forma. E ainda pior: um dos meus maiores medos e um dos maiores medos de toda a gente é o medo nuclear. E eu entendo isso. Todos têm medo disso. Sabemos desde Hiroshima que esta é uma ameaça que paira sobre as nossas cabeças. A maior ameaça será a proliferação de armas nucleares. Neste momento a ameaça tem sido contida porque há poucos países que têm essas armas. Está contido. Imagine de novo que Putin ganha. Imagine que todos os países não reconhecidos, mas que têm algum dinheiro, refletem e concluem: 'Caramba ele tinha o poder nuclear, ele ameaçou o resto do mundo e ganhou o que queria por causa da chantagem.' O que devo fazer eu? O tirano do Brunei ou quem seja. Eu também tenho armas nucleares. Teremos a mais inimaginável disseminação nuclear. Uma proliferação nuclear maior do que alguém alguma vez imaginou. Por isto também é importante que a chantagem não dê resultados e que Putin perca.
Mas mais de metade do mundo não apoia claramente a Ucrânia...
Ok. E quer que esta mais de metade do mundo seja encorajada a ter arsenal nuclear porque descobriram que compensa, que têm uma recompensa? Que quando se tem arsenal nuclear e se faz chantagem com ele somos compensados? Quer isso? O resto do mundo... As armas nucleares são um pesadelo. O pesadelo até agora tem sido contido em poucas mãos. Há 20 anos estive no Paquistão e vi algumas manifestações nas ruas em que alguns radicais islâmicos se manifestavam atrás de faixas nas quais estava, não a cara de um líder, mas sim um míssil. O míssil era o Deus destes fanáticos. Foi arrepiante imaginar que mísseis com ogivas nucleares nas mãos de um estado terrorista. Já temos o Paquistão. Imagine outros "Paquistãos".
A Ucrânia tem mais de 20% da população a viver fora do país. Milhões de deslocados internos. A guerra já fez muitos milhares de mortos. Na frente leste, nalgumas zonas, já não há sinais da Humanidade. Há antes uma outra estranha espécie de vida. Como é que um país se pode refazer disto? Não lhe pergunto pela poesia, mas pela Beleza. Depois disto, na Ucrânia, o Belo ainda terá lugar?
A beleza... Depois de Auschwitz... A beleza reapareceu. Os escritores atreveram-se a escrever poesia, os filósofos atreveram-se a tentar construir sistemas filosóficos. Mas tudo isso foi sob a escura sombra do Holocausto. Nada é comparável ao Holocausto. No entanto, teremos de viver, todos nós, jornalistas, poetas, filósofos, sob outra sombra escura da destruição da Ucrânia.
E as pessoas? Os próprios ucranianos?
Será difícil. Não é só a reconstrução material. A reconstrução material... Bom, a Rússia irá pagar, a comunidade internacional, espero, não se vai esquecer que tem uma dívida. Porque a Ucrânia protegeu-nos a todos. Mas a reconstrução mais difícil será a das almas. Como reconstruir uma alma, um espírito que foi tão magoado, tão prejudicado, famílias destruídas e tudo mais. Não sei. Não sei. Mas será um trabalho duro, com certeza.