S. Paulo acorda cinzenta, com chuva e temperatura a despencar. Depois da farra o sinal é evidente: o país só vai para a frente se toda a gente trabalhar.
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O casal vem de mãos dadas, avança na multidão - não andam, flutuam, parecem sobrenadar -, caras suadas cansadas, mas os dois a radiar. Sentam-se, afrouxam as trelas, sentam os cães. São dois beagles de olhos brancos, iguais como os espelhos, cor de leite com pouco café. Eles não: John é mulato, 30 anos, t-shirt laranja-mecânica, cabelo com cachos arbóreos, um bigode-ferradura, parece o Ruud Gullit campeão europeu de 88; Davi, 41, financeiro (John é cabeleireiro), é alto, branco, muito fino, espadal. Nem importa a pergunta: "O que é que você acha, querido? Estamos tão felizes! Como não podíamos estar?! Corremos com Bolsonaro, fascista, ignorantão! Agora o Brasil pode avançar em liberdade e paz".
Isto foi à hora do crepúsculo em que a Paulista, avenida de 2,8 km ou 3888 passos - diz-se aqui que a alameda é como o casamento, "começa no Paraíso, termina na Consolação" - explodia de festa aos beijos e abraços de braços estirados no ar, milhares de pessoas ao quadrado a festejar, um megacarnaval, Lula acabara de ser eleito o 39.o presidente do Brasil. E nessa hora, a hora do canhão de gente a estrondar no turbilhão, a cara de Andreia Haddashyl, que estava ali de estranha bata branca, era de impassividade total. Ela é massoterapeuta, estava na Paulista a trabalhar, faz massagens de rua rápidas e divinais, 10 minutos, 40 reais (7,80€). "A massoterapia é o recurso terapêutico da massagem para pessoas que queiram destressar", diz Andreia muito profissional. E essa cara é de quê? "É a minha, né? Não tinha preferência mesmo, não estou nem aí para essa eleição".
Claramente, não ganhou o candidato dela. Não faz mal, o Mundo não vai acabar; nesta altura só pula, e pula muito, mas amanhã vai avançar, tudo há de voltar ao normal. "É isso mesmo, é. O que queremos todos é resultados neste Brasil. E que o Lula traga soluções, saúde, segurança e boa economia, a economia é que faz girar o Mundo e este país. E eu tenho esperança", diz Andreia. "Mas se me perguntar se a eleição muda a minha vida, isso aí, mudar não muda, né, temos todos é de trabalhar!".
Ainda é de noite e ferve. A Paulista continua a formigar, o formigueiro é elétrico, cinemascópico, estouram foguetes no ar - e quando estouram, o povo arrebita os olhos e salta em coro e berra "Yéééééé!" - e José1, José2, Maria1 e Maria2, eles não querem revelar a identidade, são jovens advogados, trabalham no Condado, a zona financeira da Av. Faria Lima, classe alta-alta onde até o chão cheira a perfume, e não querem que se saiba que são petistas, do partido do povo, e que estão ali a exultar. Estão os quatro muito juntos e abraçados em roda a saltar, cantam em coro: "Você aí, você aí, avisa o Bolsonaro, o sigilo vai cair!". E depois repetem e repetem e desmancham-se a rir. O José1, claramente o líder do grupo, um rapaz muito articulado, bonito, explica o que aquilo é: "É o sigilo centenário que o Jair Bolsonaro decretou sobre muitos segredos do seu mandato e que é preciso revelar. É um monte de coisas: o cartão dele da vacinação, a entrada de pastores no Planalto, os dados de crachás dos filhos dele, o processo contra Pazuello, as rachadinhas do filho Flávio, as mensagens após a prisão de Ronaldinho, muito segredo que o Lula vai fazer cair, ele prometeu, graças a Deus!": E depois eles e a feroz brancura dos dentes deles desatam a entoar um refrão que toda a noite rodou pelo ar a pipocar: "Yé, yé, yo, yé, yé, yu, ó Bolsonaro, vai tomar no c*!".
Madrugou, madrugou, alvoreceu. E no dia a seguir tudo mudou: caiu chuva, chuvada, acinzentou, a temperatura despencou e S. Paulo, onde anteontem fazia 31 graus, acordou com 19 e amanhã descerá mais. É uma chapada térmica - um sinal cósmico? - a dizer que agora é preciso mesmo é bulir e trabalhar.
