Um raro cemitério dos primeiros anos da época medieval encontrado no País de Gales está a deixar os arqueólogos pensativos. Datado do século VI ou VII, deixa perceber que o local de enterro dos mortos, há 1500 anos, era mais importante na vida diária das pessoas do que se pensaria.
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Um cemitério encontrado num campo do castelo de Fonmon, perto do fim da pista do aeroporto de Cardiff, no País de Gales, está a dar que pensar aos arqueólogos. Cerca de 18 das cerca de 70 campas foram escavadas até agora, revelando segredos e objetos que não seriam habituais há 1500 anos.
A forma como os corpos estão enterrados também está a intrigar os arqueólogos. Alguns estão na posição normal na altura, e habitual hoje em dia, de barriga para cima, mas há também esqueletos colocados na lateral e até em posição fetal, com os joelhos encostados ao peito.
"Claramente alguns indivíduos foram marcados de forma diferente", disse Andy Seaman, especialista em arqueologia medieval da Universidade de Cardiff. Em declarações ao "Mail Online", revelou que nas 18 sepulturas exploradas havia quatro corpos em posição fetal. Um dos corpos, estranhamente, estava enterrado na vala que rodeia o cemitério, coberto com uma grande quantidade de pedras.
“Há registo neste período de posições atípicas de indivíduos, mas não é comum encontrar tantas numa única necrópole. O normal neste período, em Portugal, porque não posso falar do Reino Unido, é encontrar os indivíduos orientados oeste-este, seguindo o ritual cristão da crença na ressurreição“, disse Sofia Tereso, antropóloga e investigadora do Centro de Investigação em Antropologia e Saúde (CIAS), em Coimbra, e do Instituto de Estudos Medievais (IEM) da Universidade Nova de Lisboa.
"Uma necrópole muito interessante", diz antropóloga portuguesa
Os arqueólogos britânicos interrogam-se sobre o significado estas nuances de enterro. Poderiam ser para distinguir pessoas de classes sociais diferentes ou apenas um sinal de que o cemitério possa ter sido usado por um período de tempo mais lato do que o estimando, que segundo os especialistas foi entre os século VI e VII. “É uma necrópole muito interessante que deverá ser estudada em profundidade, recorrendo às ferramentas que temos hoje disponíveis, como por exemplo análises de ADN antigo”, observou Sofia Tereso, ao JN.
A riqueza e diversidade de artefactos encontrados pode apontar para a segunda possibilidade. Fragmentos de pratos, de taças e pedaços de ossos de animais tratados foram encontrados no local, abrindo uma porta para este passado de há 1500 anos. Um pedaço de madeira trabalhada, numa espécie de pequeno pino, pode indicar que os habitantes daquela zona tinham algum tipo de jogo ou outra atividade lúdica.
"Temos tendência a pensar nos cemitérios como uma espécie de espaços fechados que não frequentamos, mas que provavelmente teriam sido muito importantes para a vida no passado", explicou Andy Seaman. "E não se trata apenas de um local onde as pessoas são enterradas, mas de um local onde as comunidades se reúnem: sepultam os mortos, mas também praticam outras formas de atividade social, incluindo comer e beber - e festejar", acrescentou aquele especialista, em declarações ao canal britânico de televisão BBC.
Alguns dos artefactos encontrados sugerem até que havia ligações a comunidades do outro lado do canal da Mancha. Um pedaço de vidro, em fora de cone, encontrado numa das campas pode ter tido origem em Bordéus, em França. "É um material muito fino, muito bom. Uma achado fantástico", comentou Andy Seaman. “Em Portugal, nesse período, não é muito comum haver assim artefactos”, , comentou Sofia Tereso. "No máximo encontrámos uns aneis ou umas fivelas de adorno", acrescentou a investigadora, que estuda cemitérios medievais em Portugal, particularmente em Trás-os-Montes.
"Cerâmica sugere estatuto e significado"
No cemitério galês foram ainda encontradas peças de cerâmica, possivelmente do Norte de África. "Tendemos a pensar no Oeste da Grã-Bretanha como a franja celta, mas é tudo menos isso: era uma parte integrante de um mundo pós-romano mais vasto", argumentou Seaman. "A presença de cerâmica valiosa e vidro sugere atividade de algum estatuto e significado", acrescentou o arqueólogo ao "Mail Online".
Um opinião que encontra eco noutro especialista. "O que encontramos aqui sugere que tinham acesso a produtos importados de grande qualidade, que se podem obter apenas através de rotas comerciais, só ao alcance de pessoas com muita riqueza", argumenta Tudur Davies, da Universidade de Cardiff, também à BBC. "Que se passa aqui ao certo? Quem são estas pessoas?"
Serão necessárias mais pesquisas e mais escavações para saber ao certo durante quanto tempo foi usado o cemitério. As análises do ADN poderão revelar mais sobre as pessoas ali enterradas. Summer Courts, um osteoarqueólogo da Universidade de Reading, diz que os esqueletos estão em boas condições, apesar de terem cerca de 1500 anos, e dão algumas pistas sobre a vida naquele tempo e naquela zona do planeta.
"Temos alguns dentes que estão muito desgastados de uma forma engraçada que pode indicar a utilização dos dentes como ferramentas", diz Summer Courts, ainda à BBC. "Talvez para trabalhos têxteis, de couro ou cestaria - puxavam algo através dos dentes da frente", acrescentou.