Centenas de crianças de lares estatais ingleses sofreram abusos sexuais e crueldade inexplicável
Crianças foram expostas a predadores durante 40 anos, desde 1960. Inquérito independente acusa cinco instituições na região de Lambeth de atos "difíceis de compreender". Recomendada investigação criminal.
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Violações, abusos sexuais, bullying, intimidação, atos de racismo e nepotismo e várias outras formas de "violência brutal" atingiram centenas de crianças em lares estatais ingleses no município de Lambeth, sul de Londres, ao longo de 40 anos desde a década de 1960. Muitas violações foram cometidas pelos próprios funcionários que tinham como obrigação proteger as crianças. Outras abusos eram perpetrados por pessoas exteriores às instituições, mas contaram com o conhecimento, silêncio e encobrimento dos lares.
É a conclusão do devastador relatório IICSA - Independent Inquiry into Child Sexual Abuse (Inquérito Independente sobre Abuso Sexual Infantil), que foi realizado no verão de 2020 e revelado esta quarta-feira. O extenso documento de 228 páginas está a colocar em choque o Reino Unido.
Queixas de 705 ex-residentes das instituições
São apontadas concretamente cinco instituições, todas na área de Lambeth Council (Conselho de Lambeth). Os lares de Shirley Oaks e South Vale foram considerados "locais brutais onde a violência e a violência sexual podiam florescer livremente". No lar de Angell Road descobriu-se que a instituição "expôs sistematicamente crianças, muitas com idades inferiores a cinco anos, a abusos sexuais. Há ainda violações, afrontas e violência noutras duas instituições: Ivy House e Monkton Street.
O relatório descobriu que o lar de Shirley Oaks recebeu denúncias de abuso sexual contra 177 funcionários ou indivíduos ligados à casa, envolvendo pelo menos 529 ex-residentes. Em junho de 2020, contavam-se queixas de abuso sexual de 705 ex-residentes nos três lares. Apesar disso, ao longo de 40 anos, apenas um funcionário sénior foi punido pela sua participação no "vasto catálogo de abusos sexuais", diz o documento.
O documento da IICSA conclui que "a verdadeira escala do abuso sexual contra as crianças sob os cuidados de Lambeth nunca será conhecida, mas é certo que será significativamente maior do que aquilo que foi agora registado formalmente".
Alexis Jay, a responsável pelo inquérito, disse: "Ao longo de várias décadas, as crianças em lares e lares adotivos sofreram níveis de crueldade e abuso sexual difíceis de compreender. Essas crianças tornaram-se meros peões num jogo de poder tóxico dentro do Conselho de Lambeth e entre o Conselho e o Governo central inglês".
Maioria de abusos sobre crianças negras
As crianças negras eram as mais abusadas e violadas, denuncia o chocante documento, já que estas estavam em maioria naquelas instituições: em Shirley Oaks 57% das crianças aos seus cuidados, em 1980, eram negras. Em 1990, 85% das crianças que viviam em South Vale eram igualmente de raça negra. "O racismo ficou evidente no tratamento hostil e abusivo para com eles por parte de alguns funcionários", acusa o IICSA.
Descobriu-se ainda que, em todo esta conjunção de abusos, o Conselho de Lambeth tinha uma cultura dominada por comportamento politizado e turbulência institucional durante a década de 1980. O relatório revela, por exemplo, que o desejo de enfrentar o Governo central e evitar a fixação de uma taxa de imposto municipal em 1986 resultou na remoção de 33 vereadores dos seus cargos. As várias formas de abuso prosperaram num contexto de corrupção e má gestão financeira, que permearam grande parte dos crimes.
O terrível caso da morte de LA-A2
Durante as audiências públicas em que se concluiu que "a tutela tratava as crianças como se fossem inúteis ou as suas vidas não tivessem qualquer valor", o Inquérito deu a conhecer o caso concreto de um menino, designado como LA-A2 para proteção da sua identidade. Esse menino foi encontrado morto numa casa de banho em Shirley Oaks, em 1977. A causa aparente da sua morte foi o suicídio. O Conselho de Lambeth não informou o médico legista que o menino já havia denunciado ter sofrido várias vezes abusos sexuais e que tinha mesmo nomeado o seu abusador, um homem chamado Donald Hosegood, que era o seu "pai adotivo" no lar.
O relatório concluiu que muitos funcionários do Lambeth Council mostraram "um desprezo cruel pelas crianças vulneráveis", e que esse desdém e depreciação são tão mais graves quanto, justamente, "esses funcionários eram pagos para cuidar das crianças". Noutra parte do relatório é dito que "o racismo era evidente no tratamento hostil e abusivo das crianças".
Como resultado da investigação, o Inquérito Independente sobre Abuso Sexual Infantil recomenda vivamente que o Serviço da Polícia Metropolitana considere se há motivos para uma investigação criminal, examinando as ações do Conselho de Lambeth sobre as circunstâncias em torno da trágica morte de LA-A2.
Ex-residente de 57 anos diz que tentou matar-se
Husna-Banoo Talukdar, uma ex-residente que renunciou ao seu direito ao anonimato e que hoje tem 57 anos, disse ter sido abusada de forma repetida, quando era menina, num dos lares de Lambeth, entre 1976 e 1979. Ela diz que continuará "a lutar até que os nomes de todos os agressores sejam divulgados". E acusa: "O relatório perdeu a oportunidade de divulgar os nomes, de divulgar quem fez o quê - os agressores, o conselho, a polícia, e quem os encobriu", denunciou.
Husna-Banoo Talukdar disse que procurou "varrer o assunto das memórias" da sua infância enquanto crescia, mas que começou a ter pesadelos e flashbacks das violações quando fez 40 anos.
A mulher revelou que tentou matar-se há três anos e detalhou as suas sinistras provações numa carta de 91 páginas, escrita antes de tomar uma overdose de medicamentos. Sobreviveu após mais de uma semana em coma.
Hoje ela diz: "Cada dia agora conta, eu sei disso. E não vou parar de tentar fazer justiça".
Abusador condenado continuou a trabalhar
O relatório destacou o caso de Michael John Carroll, um membro do staff do lar de crianças de Angell Road que não divulgou, na década de 1970, uma condenação anterior por abuso sexual infantil, mas que foi mantido a trabalhar no lar quando a sua condenação prévia foi finalmente exposta.
Michael John Carroll foi posteriormente condenado em 1999 por 34 acusações de abuso sexual infantil, incluindo violação de dois meninos sob os cuidados do Conselho de Lambeth entre 1980 e 1983.
O relatório encontrou "provas claras" de que os agressores sexuais e os suspeitos de abuso sexual eram colegas de trabalho nas casas das crianças do Conselho de Lambeth.
Michael John Carroll também teve um papel ativo no recrutamento de funcionários e nas investigações internas na casa de Angell Road.
O inquérito descreveu os criminosos sexuais como "pessoas que se achavam seguramente intocáveis", enquanto as crianças se sentiam "isoladas e ignoradas". O documento alarga as suas conclusões a uma "cultura de encobrimento" e uma "gritante falta de preocupação com o dia-a-dia das crianças sob os seus cuidados diretos".
Conselho reconhece erros mas só agora pede desculpas
Em comunicado, Claire Holland, presidente do Conselho de Lambeth, já reagiu às conclusões do inquérito: "O Conselho era responsável por cuidar das crianças e por protegê-las, mas falhou, com consequências muito profundas. O Conselho pede sentidas desculpas pelos acontecimentos".
E continua: "A extensão e a escala do terrível abuso, que ocorreu ao longo de muitas décadas, continuam a ser profundamente chocantes. O Conselho falhou em reconhecer as preocupações quando elas surgiram, muitas vezes não acreditou nas crianças quando revelaram o abuso e depois falhou em tomar medidas eficazes".
E conclui: "O facto de que tantas crianças e adultos terem sido desacreditados agravou as suas experiências e causou mais dor e angústia com impactos ao longo das suas vidas".
O relatório final do Inquérito Independente sobre Abuso Sexual Infantil, que irá conter as conclusões gerais de todas as 19 secções da investigação, será apresentado no Parlamento inglês ainda no curso do verão deste ano.
Relatório faz quatro recomendações imediatas
Os responsáveis pelo relatório anotaram o pedido de desculpas materializado pela presidente do Conselho de Lambeth, mas observam que a instituição não fez nenhum pedido de desculpas significativo até agora. Isto apesar das inúmeras investigações e fiscalizações ao longo de 20 anos que deixaram absolutamente claro que havia falhado o dever e a responsabilidade de cuidar de tantas crianças vítimas de abusos sexuais.
O relatório faz quatro recomendações. Primeira: "Exigir uma resposta e um plano de ação do Conselho de Lambeth sobre as questões levantadas neste relatório".
Segunda: "Tornar obrigatório a instrução sobre proteção e paternidade corporativa para conselheiros eleitos".
Terceira: "Empreender uma revisão total das verificações de recrutamento e verificação de cuidadores adotivos atuais e funcionários da casa das crianças".
E, por último: "O Serviço da Polícia Metropolitana deve considerar se é necessário abrir uma investigação criminal sobre as circunstâncias em torno da morte de LA-A2".