Centenas de ossos e roupas: centro de recrutamento e extermínio de cartel causa horror no México
O horror tomou o México. Um grupo de familiares de pessoas desaparecidas de Jalisco reportou, este mês, a descoberta de um "centro de extermínio" de pessoas desaparecidas em Teuchitlán, uma cidade a pouco mais de uma hora de Guadalajara, a capital do estado.
Corpo do artigo
Após chamadas anónimas, o coletivo Guerreros Buscadores, um grupo dedicado a localizar pessoas desaparecidas, iniciou as escavações no Rancho Izaguirre, um lote retangular, com poucas construções e cercado por muros perimetrais, entre terras agrícolas no município de Teuchitlán, e abriu três buracos, onde foram descobertos pedaços de ossos incinerados. Para o grupo, as fossas eram "crematórios" e o local um "centro de extermínio".
Numa construção, encontraram também vários quartos e mais de 1300 objetos. Entre malas e mochilas, foram encontrados ainda 154 pares de sapatos, 305 pares de calças e camisolas coloridas. Muitas das peças são masculinas, como os 195 boxers, mas também há 14 vestidos, três saias e três sutiãs, bem como calças de tamanho infantil. Além disso, foram descobertos 143 cobertores, 65 dos quais são indênticos, e toalhas velhas.
Também foi encontrada uma carta. "Meu amor se algum dia eu não voltar, peço-te apenas que te lembres que te amo muito", escreveu um jovem que terá sido sequestrado em fevereiro de 2024, mas que, segundo o grupo, regressou à família em outubro.
Nas escavações foram descobertos cartuchos de armas longas, chapas para praticar tiro e um altar da "santa morte", culto comum entre criminosos.
Recrutamento e treino de sicários
O local seria um lugar onde traficantes de drogas treinavam pessoas recrutadas supostamente à força. De acordo com Índira Navarro, líder dos Guerreros Buscadores, o Cartel Jalisco Nova Geração (CJNG) recruta jovens em Jalisco e outras regiões através de sequestros ou falsas ofertas de emprego.
O caso de Teuchitlán "era um campo de treino destinado à preparação de supostos sicários", opina, por sua vez, Jorge Ramírez Plascencia, que investiga na Universidade de Guadalajara a crise de desaparecidos.
Ramírez Plascencia acredita que o calçado e as roupas abandonadas pertencem a pistoleiros, que geralmente recebem roupas militares após o treino, e que os restos seriam de "recrutas assassinados". Práticas como a incineração de corpos "servem para treiná-los em tortura, desmembramento, tolerância à morte”, defende. Por outro lado, o especialista argumenta que o local não seria de extermínio. "Parece-me muito longe para levar 10, 20 pessoas para assassiná-las ali", rematou.
O recrutamento forçado de jovens pelo crime organizado em Jalisco é conhecido há mais de uma década. De acordo com o jornal espanhol "El País", várias vítimas foram contactadas através de anúncios de emprego falsos em 2017. As vítimas foram convocadas para sessões de treino em Tala, uma cidade perto de Teuchitlán, com a promessa de um pagamento de quatro mil pesos (equivalente a cerca de 183 euros). O grupo criminoso recolhia-os, mas submetia-os a um regime quase militar, com o objetivo de os integrar na sua estrutura. Qualquer reclamação era resolvida com a morte.
Em 2024, meios de comunicação e coletivos documentaram cerca de 30 casos de jovens que desapareceram perto da estrada de Tlaquepaque, após irem a supostas entrevistas de trabalho. Por volta de 40,6% dos desaparecidos no México são homens de 20 a 39 anos. No ano anterior, oito jovens foram assassinados em Zapopan, perto de Guadalajara, depois de terem falhado uma missão para extorquir um "call center".
Local já tinha sido revistado
A propriedade já havia sido revistada em setembro passado após combates entre militares e o CJNG, que possui forte presença neste município a 60 quilómetros da capital do estado, Guadalajara. A procuradoria de Jalisco afirma que, na época, encontrou restos ósseos com "exposição térmica".
No entanto, o coletivo descobriu na semana passada muitos mais ossos enterrados, centenas de sapatos e outros objetos.
Esta semana, a procuradoria de Jalisco admitiu que as suas primeiras investigações em Teuchitlán foram "insuficientes". "Não é crível que uma situação dessa natureza não tenha sido conhecida pelas autoridades locais", disse o procurador-geral, Alejandro Gertz, que assumiu o caso após um pedido da presidente mexicana, Claudia Sheinbaum.
Após novas inspeções, a procuradoria afirmou, na quinta-feira, que "não existem estruturas que funcionassem como fornos", embora continue à procura de possíveis restos.
"A descoberta fica ainda mais perturbadora" porque esses elementos não foram detetados durante as primeiras buscas, disse, na sexta-feira passada, Liz Throssell, porta-voz do Escritório de Direitos Humanos das Nações Unidas, ao defender investigações "transparentes".
Protestos em todo o país: "Podia ter sido eu"
Manifestantes reuniram-se em todo o México, no sábado passado, para exigir justiça após a descoberta macabra do alegado campo de treino de um cartel de droga. As manifestações ocorreram no estado de Jalisco e em cidades de todo o país, incluindo a capital Cidade do México, Tijuana, Veracruz e San Luis Potosí. Os manifestantes colocaram velas e filas de sapatos em homenagem aos desaparecidos.
"Vim falar em nome do meu filho e de todos os desaparecidos", disse Aurora Corona, de 58 anos, cujo filho desapareceu em março do ano passado no estado de Nuevo León, no nordeste do México. Corona espera que a descoberta pressione as autoridades a fazer mais para encontrar as centenas de milhares de pessoas desaparecidas no país. "Espero que nos prestem atenção agora que veem os horrores do país em que vivemos", disse, em lágrimas.
Por sua vez, Juan Carlos Perez, um estudante de 22 anos que participava no protesto, espera que o protesto sirva de alerta para que se tomem medidas contra a violência criminosa desenfreada que sobrecarregou as instituições de segurança e de justiça do México durante duas décadas. "A minha primeira reação, infelizmente, foi 'ah, olha, mais um', mas depois comecei a acompanhar a história e percebi que podia ter sido eu, podia ter sido o meu pai, a minha mãe", contou.
Desde outubro de 2023, grupos que procuram mexicanos desaparecidos reportaram a descoberta de mais seis alegados crematórios clandestinos em Jalisco. Centenas de sepulturas foram descobertas noutras partes do país.
Mais de 124 mil pessoas desaparecidas
Jalisco é o estado mexicano com mais desaparecidos: quase 15 mil dos 124.059 registados oficialmente, a maioria desde 2006, quando foi declarada a guerra ao narcotráfico.
Há também instituições de segurança e de justiça comprometidas por vínculos com criminoso e em 2023, Jalisco tinha 798 procuradores para investigar 137.100 crimes cometidos naquele ano, uma média de 172 casos por agente, segundo o instituto de estatísticas Inegi.
Os crimes têm vindo a captar cada vez mais a atenção política. A presidente Claudia Sheinbaum implementou uma série de medidas para lidar com a crise, como unificar os registos de identificação não controlados, começando pelos dados mantidos pelos procuradores e serviços forenses para que as informações possam ser cruzadas, igualando o crime de desaparecimento ao de sequestro e fortalecendo a Comissão Nacional de Busca. Também anunciou algumas iniciativas, como não esperar 72 horas para registar um desaparecimento.
A violência também satura os necrotérios. Com capacidade para 1287 corpos, os de Jalisco receberam 5435 em 2023. Cerca de 72 mil corpos permanecem sem identificação nos serviços forenses mexicanos.