Protestaram e gritaram por mais liberdade, ato raro para uma China autoritária. Mas será que os esforços valeram a pena? Em novembro, milhares de manifestações eclodiram em cidades como Xangai para lembrar as vítimas e contestar a política de "covid zero", assim como a liderança de Xi Jinping, a quem foi pedido que renunciasse ao cargo. Como resultado, a China abandonou abruptamente a maior parte das duras medidas para conter o coronavírus. Mas quais a consequências desta mudança?
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A reviravolta aconteceu de forma inusitada e numa questão de dias. O partido comunista chinês liderado por Xi Jinping aliviou as regras da quarentena e as restrições nas viagens, descartou a principal aplicação tecnológica que rastreava casos covid, terminou com o bloqueio de circulação entre cidades e tornou a testagem voluntária, deixando de contabilizar os casos assintomáticos. Medidas que durante estes três últimos anos tinham sido cumpridas "religiosamente" e que se mostraram profundamente restritivas.
Jorge Tavares Silva, professor de Relações Internacionais e especialista em assuntos relacionados com a política interna e externa da China, explica que a lógica deste modelo, que se acreditava ser o caminho para o sucesso no controlo da pandemia, era de tal modo sufocante que "para se proteger a população em relação ao vírus, muitas pessoas ficaram impossibilitadas de ir ao hospital para tratar outras doenças". A consequência desta falta de flexibilidade resultou "nas manifestações recentes, que espelham o desgaste sobretudo da geração mais jovem".
O fim da política "covid zero" é visto pela comunidade internacional e por diversos especialistas como uma decisão tardia que vem prejudicar não só a China, como também o Mundo. A falta de preparação no momento desta mudança, que ocorre no pico do inverno, e o abandono da maioria das medidas de mitigação da doença intensificam os riscos. Dados do jornal britânico "The Guardian" mostram que apenas cerca de 50% da população recebeu as três doses de uma vacina contra a covid-19. As pessoas mais velhas estão pouco vacinadas e a China ainda depende de vacinas de fabrico próprio, que são menos eficazes.
Profissionais de saúde em todo o Mundo questionam o tempo que a China levou para vacinar os grupos mais vulneráveis e a rejeição das vacinas ocidentais, que se mostraram mais eficazes na prevenção de doenças graves. No entanto, Jorge Silva lembra que as realidades europeia e chinesa não podem ser comparadas, uma vez que "falamos do país mais populoso do Mundo, com 1,4 mil milhões de habitantes. Em cada cinco pessoas uma é chinesa. Lembrem-se do tempo que Portugal demorou para vacinar totalmente a população e apliquem isso a esta dimensão".
Xi Jinping rejeitou ajuda internacional
A diretora dos serviços de informações dos EUA, Avril Haines, revelou que Xi Jinping não quis aceitar ajuda, porque se convenceu de que a China conseguiria produzir uma vacina eficaz contra a variante Ómicron, o que nunca chegou a acontecer. Esta persistência do regime levou a um atraso que se mostrou caro e letal. Enquanto a maioria dos países vacinou a sua população em 2021 e reforçou a imunidade em 2022, a China foi ficando para trás.
E os resultados são, agora, a evidência desta linha de pensamento: especialistas que acompanham a situação estimam que 60% da população chinesa, o equivalente a cerca de 10% da população mundial, será infetada nos próximos 90 dias, tal como avança a revista científica britânica "Nature". Devido ao elevado nível de infeção e à baixa imunidade da população, estima-se que as mortes por covid possam chegar às nove mil por dia até ao final de março.
As autoridades chinesas estão a aumentar a capacidade dos hospitais e das chamadas clínicas de febre, para atender o número crescente de infetados com covid-19, e já oficializaram cinco mortes, revelando que a intenção de Pequim é deixar o vírus circular livremente. Informações que preocupam algumas figuras globais de saúde e que deixam em dúvida se o chefe da Organização Mundial de Saúde poderá declarar o fim da pandemia em 2023.
Contudo, para Pedro Simas, virologista e diretor do centro de investigação biomédica da Universidade Católica, não há motivo para alarme social, uma vez que "não é expectável que surjam a partir da China variantes que ponham em causa a imunidade que se estabeleceu na Europa e no resto do Mundo". Este especialista explica que a "política covid zero não era sustentável a curto/médio prazo, porque sabíamos que este vírus era endémico e por isso não haveria ninguém no Mundo que nos próximos dois, três anos não fosse infetado".
Pedro Simas afirma que é impossível que um país como a China esteja completamente isolado e que o resto do Mundo tenha o vírus a circular. Por essa mesma razão, o virologista alerta que "a China deve sim aliviar as restrições, mas tem de se certificar que a sua população está vacinada e protegida" e dá o exemplo da disseminação natural, que aconteceu em Portugal com a variante ómicron que "contribuiu para a construção da imunidade natural que, aliada à vacinal, permitiu à população circular de uma forma mais livre". Em suma, a China tem de priorizar os grupos de risco na vacinação e libertar a sociedade para o vírus, porque caso contrário surgirão "mais infeções, mais hospitalizações e consequentemente mais mortes".
A China enfrenta assim grandes dificuldades entre gerir uma pandemia e o descontentamento social. Jorge Tavares Silva explica que um cenário de recuo face às medidas "covid zero" não pode ser descartado, mas alerta que nesse caso o partido de Xi Jinping "teria de se justificar muito bem perante a sociedade, tal como aconteceu no congresso em outubro". A reação da população seria "imprevisível" e por determinar ficaria a "capacidade de gerir um recuo, depois de três anos isolados". O especialista relembra que seria difícil do ponto de vista social, sendo certo que do ponto de vista dos indicadores seria catastrófico. "Qualquer descontrolo de um lado ou de outro pode pôr tudo em causa", finalizou.