A imagem de uma grávida, sentada num banco de plástico, a esvair-se em sangue à porta de um hospital pode ser o momento de viragem no restrito confinamento que isolou os 13 milhões de habitantes da cidade Xian, na China. O bebé morreu e a mulher recupera da cirurgia, enquanto milhões temem o isolamento forçado e a fome.
Corpo do artigo
As autoridades de Xian anunciaram, esta quinta-feira, a suspensão do diretor-geral do Hospital Gaoxin, Fan Yuhui, e a demissão dos chefes do departamento médico e de ambulatório. Não é certo quantos funcionários foram punidos pela morte de um bebé, após ter sido negada a entrada a uma mulher grávida de oito meses, que apresentou um teste à covid-19 com algumas horas de atraso.
O hospital foi obrigado a emitir um pedido público de desculpas, a fornecer compensação e prometeu "otimizar o processo de tratamento médico". As autoridades disseram que foi feita uma investigação ao incidente mas não deram mais detalhes.
Xian puniu já vários funcionários locais, incluindo quadros do Partido Comunista (PC), por negligência na gestão do surto, com quase dois mil casos desde 19 de dezembro. O governo local revelou que duas outras autoridades do Centro de Emergências e da Comissão Municipal de Saúde foram advertidas formalmente pelo partido.
Em comunicado, o governo de Xian disse que o incidente "causou preocupação generalizada na sociedade e originou um grave impacto social". A mulher esperou do lado de fora do hospital, sentada num banquinho de plástico, no dia 1 de janeiro, até ter começado a sangrar. Num vídeo registado pelo marido, e que foi amplamente divulgado nas redes sociais chinesas, é visível uma poça de sangue aos pés da grávida, com oito meses de gestação.
O vídeo, divulgado inicialmente de forma tímida e localizada, ganhou expressão ao cativar a atenção da comunicação social oficial chinesa, que o noticiou e republicou. Um movimento pouco usual entre os meios favoráveis ao regime, que sugere alguma insatisfação de Pequim com a forma, férrea, como está a ser gerido o confinamento obrigatório instaurado em Xian a 22 de dezembro.
O bloqueio restrito tem gerado críticas sobre a escassez de alimentos e o comportamento violento das autoridades, que estão sob pressão para reduzir o número de casos de covid-19, ao abrigo da política oficial chinesa de zero casos, a menos de um mês da abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno, a 4 de fevereiro, em Pequim. A data coincide com o Ano Novo Lunar, a maior celebração da China, que costuma movimentar milhares de milhões de pessoas todos os anos.
Xian, na província de Shaanxi, é o epicentro de uma nova vaga de casos na China, tendo registado cerca de 1800 casos nas últimas duas semanas, num surto que as autoridades atribuem à variante delta, menos contagiosa que a ómicron. A Comissão Nacional de Saúde da China anunciou, esta quinta-feira, a deteção de 189 novos casos positivos de covid-19, nas últimas 24 horas, 132 dos quais por contágio local. Entre os casos locais, 64 foram diagnosticados na província de Henan (centro), 63 em Shaanxi (a que pertence Xian) e cinco na província de Zhejiang (leste).
Apesar da aparente diminuição dos casos, o surto de Xian, o maior na China, preocupa as autoridades. A necessidade de controlar rapidamente os casos levou à imposição de medidas draconianas.
Quando foi ordenado, o bloqueio determinava que um membro da família estava autorizado a sair para fazer compras de mercearia a cada dois dias. À medida que os casos foram aumentando, as regras foram apertando. Atualmente, a maioria dos residentes só pode sair de casa para fazer testes à covid-19 e nenhum dos 13 milhões de habitantes está autorizado a deixar a cidade.
"O meu maior medo não é a falta de comida, é ser arrastado para um desconhecido centro de quarentena porque uma pessoa do meu prédio testou positivo", disse um residente de Xian, na plataforma Weibo, o Twitter da China, citado pelo jornal norte-americano "The Wall Street Journal".
Em Xian circulam documentos que mostram a intenção oficial de enviar todas as pessoas com contactos com pessoas infetadas - uma definição vaga que pode aplicar-se a residentes de um prédio com um caso confirmado num simples apartamento - para centros de quarentena fora da cidade. Dirigentes locais admitiram, na segunda-feira, que havia 40 mil pessoas em 387 centros de quarentena.
A escassez de bens alimentares é outro dos problemas citados nas redes sociais chinesas. Um trabalhador chinês diz que recebeu do governo uma couve bebé, 10 bolinhos e cinco quilogramas de farinha, colocou o dedo na ferida. "Preocupa-me mais a falta de comida que a ida para um centro de detenção", disse, citado pela agência de notícias Associated Press (AP).
"Não posso deixar o prédio e está a ficar cada vez mais difícil comprar comida online", escreveu um residente de Xian no Weibo. Identificado como Mu Qingyuani Sayno, não respondeu aos pedidos de comentário, apesar de a conta ser verificada, detalhou um problema retratado por vários internautas.
Zhang Canyou, especialista do grupo de Prevenção e Controlo de Epidemia do conselho municipal de Xian, admitiu que "pode haver pressão das comunidades na cadeia de abastecimento". Citado pela agência de notícias oficial chinesa, Xinhua, apressou-se a tranquilizar as massas: "O governo vai dar tudo para coordenar os recursos necessários para responder às necessidades diárias das pessoas, em termos médicos e de serviços", disse.
Desde o início da pandemia, 103.121 pessoas foram infetadas na China e 4.636 morreram, números oficiais. A última morte foi registada há 11 meses. O número total de pacientes ativos é, atualmente, de 3282, entre os quais 30 encontram-se em estado grave.
A covid-19 provocou 5.456.207 mortes em todo o mundo desde o início da pandemia, segundo o mais recente balanço da agência France-Presse. Em Portugal, desde março de 2020, morreram 19.054 pessoas e foram contabilizados 1 539 050 casos de infeção, segundo dados da Direção-Geral da Saúde de quarta-feira. Só na sexta-feira foram mais de 39 mil, pelo segundo dia seguido.
Agredido pela polícia por comprar bolinhos no fim de ano
O caso da mulher grávida que perdeu o bebé à porta do hospital não é o primeiro a ser denunciado nas redes sociais chinesas, quando muitos começam a perder a paciência com as medidas draconianas aplicadas em várias cidades, na linha da política de tolerância zero à covid-19.
No último dia de dezembro, um homem foi espancado pela polícia quando saiu de casa para comprar bolinhos para a família - outras fontes dizem que saiu de casa para ir levar os alimentos a familiares isolados. Foi visto pela polícia e espancado por dois agentes. O caso foi filmado e entre as agressões e a comida espalhada no chão germinou a indignação das redes sociais. O caso ficou conhecido e os dois agentes foram suspensos e multados, em 200 yuan cada (cerca de 30 euros).
Pedalou 10 horas em bicicleta de aluguer para fugir ao confinamento
Um homem tentou fugir ao confinamento obrigatório decretado a 22 de dezembro em Xian. Usou uma bicicleta pública, alugada na rua, e pedalou cerca de 10 horas para regressar à terra natal, a cerca de 90 quilómetros, conta o WSJ. Esforço inglório, foi apanhado pela polícia e devolvido à procedência, sem registo (vídeo, pelo menos) de qualquer agressão ou retaliação policial. Foi colocado em quarentena e multado em 200 yuans (cerca de 30 euros), por violar as regras de prevenção da covid-19.
Polícia bom, confinamento mau
Os meios de comunicação estatal divulgaram o vídeo de uma criança a ser levada de emergência pela polícia para um hospital, depois de a mãe se queixar que a menina, com leucemia, não tinha feito o tratamento devido às regras do confinamento obrigatório e estava com dificuldades para respirar.
Números
10 milhões - Foi ordenada uma terceira ronda de testes em massa em Xian. As autoridades locais dizem que têm capacidade para fazer o teste da zaragatoa a 10 milhões de pessoas em sete horas, o suficiente para analisar toda a população portuguesa num dia de trabalho (jornada semanal de 35 horas). E, dizem, que processam três milhões de resultados em apenas 12 horas.
40 mil - São pelo menos 387 - e a tendência é de aumentar - o número de centro de quarentena instalados no exterior da cidade de Xian. Dados oficiais, na segunda-feira havia 40 mil pessoas em isolamento naquelas instalações criadas para conter a progressão da covid-19.
1,7 milhões - Na cidade de Yuzhou, foi ordenado um confinamento que afeta os cerca de 1,7 milhões de habitantes daquele povoado da província de Henan.
710 milhões - A China vacinou cerca de 85% dos 1200 milhões de habitantes (cerca de 710 milhões de pessoas) contra a covid-19, segundo dados do site "O Nosso Mundo em Dados", embora as vacinas chinesas sejam consideradas menos eficazes.
4636 - Oficialmente, a China registou pouco mais de 103 mil casos de covid-19 desde que a doença foi considerada uma epidemia, há dois anos. Nesse período, números do governo chinês, morreram 4636 pessoas - o último óbito foi reportado há 11 meses.
30 - O número total de pacientes ativos com covid-19 na China continental é de 3282, dos quais 30 internados em estado grave.