Relatos vindos do Kremlin sugerem que Vladimir Putin estará a realizar uma purga no seu círculo íntimo. O ministro da Defesa "desapareceu" durante quase duas semanas. Um dos principais conselheiros do presidente fugiu da Rússia. E, desde o início da guerra, já morreram ou foram afastados 13 generais. O círculo íntimo de Putin aperta-se cada vez mais.
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O "desaparecimento" do ministro da Defesa a meio da maior operação militar em décadas não passou despercebido. Sergei Shoigu, de 66 anos, é tido como um dos homens mais próximos de Putin. Não era visto desde 11 de março.
Na semana passada, o Kremlin garantiu que Shoigu, o presidente e o Conselho de Segurança Permanente tinham discutido "o progresso da operação especial na Ucrânia". Porém, ao contrário do habitual, não foram divulgadas fotos ou vídeos do encontro e o ministro não foi citado uma única vez no comunicado oficial.
Pessoas próximas de Shoigu terão dito à agência independente Agentstvo que o governante tem tido alguns problemas de saúde, ao nível do coração. Porém, com o impasse na Ucrânia, tudo aponta para um acumular de tensão entre o ministro que está a liderar a invasão e outros responsáveis militares e políticos.
Nesta quinta-feira, contudo, o Kremlin garantiu que Shoigu teve uma reunião com Putin. "O ministro da Defesa tem agora muitas preocupações. Há uma operação militar especial [na Ucrânia]. Por isso, agora não é o momento para atividades mediáticas, isso é bastante compreensível", disse o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov.
Estranhamento, ao contrário de Shoigu, a sua filha mais nova, Ksenia, de 31 anos, tem publicado várias fotografias nas redes sociais vestida de azul e amarelo, as cores da Ucrânia. Quem já não irá aparecer mais junto de Putin é Anatoli Chubais, que era o conselheiro especial do presidente para o clima.
"Pai dos Oligarcas" bate com a porta
Chubais, de 66 anos, é conhecido como "Pais dos Oligarcas". Foi ele que, durante os governos de Boris Ieltsin, nos anos 90, privatizou 80% das empresas estatais russas, processo que deu origem ao núcleo de poderosos e multimilionários oligarcas, como Roman Abramovich.
Terá sido Chubais que, nessa altura, trouxe para a Administração Pública um jovem Vladimir Putin, na altura quadro do KGB. Na quarta-feira, a agência noticiosa russa confirmou a demissão, mas não adiantou o motivo. O multimilionário russo, que já estará na Turquia, também optou por não afrontar o antigo amigo e recusou-se a fazer qualquer comentário.
13 generais assassinados ou exonerados
Pelo menos cinco generais russos já terão sido mortos desde o início da invasão à Ucrânia. E outros oito terão sido demitidos. Estima-se que estejam envolvidos cerca de 20 generais na "Operação Militar Especial" na Ucrânia, portanto, de uma maneira ou de outra, mais de dois terços já foram afastados do comando.
Andrei Sukhovetsky liderava a 7.ª Divisão Aérea e era um dos comandantes adjuntos do 41.º Exército Russo. Foi morto a 2 de março por um sniper na Ucrânia. O major-general tinha sido um herói da anexação russa da Crimeia em 2014 e sua morte terá abalado o moral das tropas russas. Talvez por isso, foi a primeira e a única morte de um general confirmada pela Rússia. Há dois dias, o tenente-general Andrei Mordviched, comandante do 8.º Exército e uma das mais altas patentes das Forças Armadas russas, terá sido morto num ataque ucraniano a um aeródromo perto de Kherson.
Ao todo, já terão morrido cinco generais russos, um número altamente invulgar, mais ainda num tão curto espaço de tempo. Uma das explicações avançadas pelo Kremlin é que os ucranianos estão a ter acesso à localização das altas-patentes do exército russo e estão, deliberadamente, a visar os generais para perturbar a operacionalidade das forças invasoras.
À procura de uma toupeira
Vladimir Putin acredita que alguém de dentro do Kremlin está a passar táticas militares russas a agentes americanos e britânicos, que depois as fazem chegar aos ucranianos. Além da morte dos generais, esta vantagem tem permitido aos ucranianos conter o avanço das forças russas. Por isso, o presidente está determinado em encontrar a fuga.
Os segredos da cúpula russa costumam ficar bem seguros no interior do Kremlin. Mas, desta vez, proliferam rumores de que nem tudo está bem no círculo íntimo. Andrei Soldatov, especialista em serviços secretos russos, avançou à revista "New Yorker" que espiões militares estão a varrer o FSB de cima abaixo à procura de toupeiras. "Parece que Putin está zangado com a má qualidade das informações e o mau desempenho na Ucrânia, mas também com as fugas que permitiram aos norte-americanos antecipar a invasão".
Afastado vice-comandante da Guarda Nacional
O grupo de jornalismo de investigação holandês Bellingcat revelou que, na passada semana, o presidente despediu o vice-comandante da Guarda Nacional Russa, uma força que também está a participar na invasão à Ucrânia. Uma fonte garantiu aos jornalistas que Roman Gavrilov, que fez parte do destacamento de proteção pessoal de Putin, teria sido detido pela FSB por suspeitas de "fugas de informação militar que causaram perdas de vidas". Todavia, outras duas fontes dizem que foi afastado por "desperdício de combustível".
Soldatov lembra que, nos últimos anos, a Rússia terá gasto muito dinheiro a financiar partidos políticos e a aliciar altos responsáveis ucranianos. Porém, esse investimento não se traduziu no apoio popular prometido. O diretor da secção estrangeira do FSB, Sergei Beseda, e o seu adjunto Anatoly Bloyukh, que tinham a seu cargo o dossiê da Ucrânia, foram exonerados e estão ambos em prisão domiciliária.
Fúria chegou ao círculo íntimo
Várias fontes confirmaram que a fúria de Putin já se fez sentir no topo da cúpula e que tem vindo a destratar vários elementos do seu círculo íntimo. Ainda antes do início da invasão, o presidente russo já tinha humilhado publicamente o diretor do Serviço de Inteligência Russo, Sergey Naryshkin.
Já com a operação em curso, Alexander Bortnikov, um velho aliado e chefe do FSB (ex-KGB), foi um dos alvos da fúria do presidente, talvez por ser apontado internacionalmente como possível substituto de Putin, caso ocorra um golpe de Estado.
Outro dos visados foi o comandante das Forças Armadas russas, Valery Gerasimov, que Putin culpa pelas grande perdas em material bélico, nomeadamente tanques e blindados. O chefe dos serviços de informações secretas militares, Igor Kostyukov, também sido muito criticado e comenta-se que deverá ser exonerado em breve.
Medo de contar a verdade a Putin
Os analistas acreditam que ninguém avisou Putin do que se estava a passar porque todos tinham medo de lhe contar a verdade. E agora ainda mais medo terão. "Já há tantas pessoas presas, incluindo agentes do FSB. Será seguro dizer a Putin algo que ele não goste? É um grande dilema para os generais", explicou Soldatov.
Apesar do tratamento hostil de Putin, o analista não espera que alguém do círculo íntimo do presidente o tente assassinar. "Acho que ele não corre praticamente perigo nenhum. Tem dois serviços de segurança cuja principal responsabilidade é assegurar que nada lhe acontece. E ele foi um antigo agente secreto. Conhece os riscos. Por várias vezes já disse que sobreviveu a 12 ou 13 tentativas de assassinato".
Uma nova purga em curso?
Num discurso emitido pela televisão russa na passada segunda-feira, Vladimir Putin endureceu a linguagem contra os "traidores" e defendeu a necessidade de uma "autopurificação da sociedade". Termos que fizeram lembrar os usados por Estaline nos anos 1930, o que deu mais força aos rumores de uma purga em curso no interior do Kremlin.
Um ex-analista britânico disse ao jornal "Business Insider" que seriam plausíveis punições a oficiais de topo, porém, frisou que a Rússia também tem um historial de fabricar histórias para despistar a realidade.
"A Rússia está a fracassar militarmente e de uma forma espetacular", afirmou Philip Ingram. Por isso, é natural que haja punições por falhanços operacionais mas também por falhas de informação.
"O FSB falhou inicialmente ao não dar uma estimativa real da força da Ucrânia e da sua determinação em proteger a pátria. Por outro lado, as forças militares também têm estado a dar informações falsas ao dizer que são melhores do que na realidade são. Portanto, é quase como uma tempestade perfeita", acrescentou o analista.
"Vitória a todo o custo"
Reais ou fabricações, a verdade é que os rumores de punições e afastamentos podem ser vistos como um sinal de "vitória a todo o custo" que está a ser dado aos comandantes russos na Ucrânia. Isso poderá resultar numa escalada de violência para não escapar ao mesmo destino dos antecessores.
"O Kremlin está a mandar uma mensagem poderosa a dizer: este comandante falhou. E manda uma mensagem poderosa ao novo a dizer: tens de conseguir isto. E isso costuma traduzir-se infelizmente, em maior violência", explicou Ingram. "Deveremos ver mais ataques a centros populacionais e potencialmente noutras zonas da Ucrânia", antecipou.