A disputa entre o presidente argentino e as pessoas com deficiência resultou na maior derrota legislativa do Governo, alimentada por uma denúncia de corrupção na compra de medicamentos que derrubou a imagem de Javier Milei.
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O parlamento argentino anulou, na quinta-feira, o veto do Presidente Javier Milei e aprovou uma lei que aumenta os benefícios para as pessoas com deficiência, um grande revés político para o líder ultraliberal.
O Senado anulou o veto presidencial por 63 votos contra sete, depois de em agosto, a Câmara dos Deputados já o ter rejeitado.
"Agora que conseguimos anular o veto de Milei de cortes para as pessoas com deficiência, vamos lutar para que devolvam o dinheiro roubado e que devia ser gasto em medicamentos" para esses pacientes, disse à Lusa, em frente ao parlamento argentino onde centenas de pessos celebraram a decisão do Senado, a psicóloga Cláudia D'ippolito.
Cláudia segurava uma bandeira argentina na qual se lia: "Vamos atrás de vocês, devolvam o nosso dinheiro".
Pela primeira vez, o parlamento argentino conseguiu reunir dois terços dos votos para anular um veto de Milei, que mantinha o corte no auxílio médico e nas prestações de saúde às pessoas com deficiência, área mais vulnerável da sociedade, em nome do excedente fiscal.
A derrota legislativa de Milei combina-se com um escândalo de corrupção. Em áudios divulgados na imprensa, o então diretor da agência para as pessoas com deficiência argentina Diego Spagnuolo deu a conhecer um esquema de corrupção, liderado por Karina Milei, irmã do Presidente e secretária-geral da presidência.
De acordo com os áudios divulgados, e conhecidos do Presidente, 8% de todos os medicamentos eram desviados para o esquema de corrupção, sendo que 3% ficavam para Karina.
"O que eu sinto ao saber que roubavam das pessoas com deficiência, enquanto cortavam prestações de serviço de saúde dos mesmos pacientes é asco. Essa é a palavra: asco", afirmou Cláudia, de 62 anos, mãe de Ángel, de 21 anos, portador de uma doença neurometabólica, que afeta locomoção, visão, fala e coração.
Cláudia é também psicóloga e prestadora de serviços a portadores de deficiência.
A inflação acumulada desde dezembro de 2023, quando Milei assumiu o poder, chega a 224%, enquanto os reajustes para os prestadores de serviços ficaram abaixo de 100%.
Além disso, os pagamentos acontecem mais de seis meses depois da prestação dos serviços, diluindo o valor através da inflação, de cerca de 2% mensais.
"Estão a dever-nos mais de 100%. Aproveitam-se dessa área vulnerável que não pode sair para protestar", criticou.
Javier Milei, que se vangloria de aplicar "o maior ajuste fiscal da história", equivalente a 5% do produto interno bruto (PIB) desde o primeiro mês de governo, tinha vetado a lei de Emergência em Deficiência, aprovada pelo Congresso em 10 de julho.
A aprovação foi a resposta dos legisladores ao Governo, que quer fazer ajustes mesmo nas áreas mais vulneráveis da sociedade, como reformados, hospitais infantis, universitários, professores e, para espanto da maioria, pessoas com deficiência.
Embora a lei represente um custo fiscal de 0,26% do PIB no que resta de 2025 e de 0,46% em 2026, Milei alegou que a iniciativa compromete o equilíbrio fiscal, núcleo do plano económico do Presidente argentino.
"Se você teve um filho com deficiência, isso é problema da família, não do Estado", afirmou Milei.
Sob essa lógica, congelou as pensões por invalidez e as prestações de serviço de todos as áreas da saúde que acompanham os portadores de deficiência, como terapeutas, psicólogos e enfermeiros, entre outros.
Também cortou ajudas em transporte e em medicamentos. Não aprova novos tratamentos, deixando milhares de pacientes em situação crítica.
"A população está cansada de tantas mentiras, de tanta soberba, de tanta violência verbal. Milei é um violento que zomba da nossa dependência", desabafou Alicia Reina, de 55 anos, professora reformada e mãe de Gadiel Vallejos, de 16 anos, portador de deficiência.
Devido ao veto de Milei, Gadiel ficou sem fonoaudiologia e sem psicopedagogia. As profissionais abandonaram o tratamento porque ainda não receberam nenhum pagamento este ano.
Para 74,5% dos entrevistados pela consultora Synopsis, a lei de Emergência em Deficiência não devia ter sido vetada. Apenas 21,3% eram a favor do veto, um número inferior aos eleitores de Milei, indicando divergências entre apoiantes do Presidente.
Outro estudo, da consultoria Management & Fit, indicou que 67,4% era contra o veto, enquanto 28,3% era a favor.
"É bem claro que a anulação do veto presidencial é uma bofetada na cara de Milei. Até mesmo uma parte considerável dos apoiantes pede ao Presidente um pouco mais de sensibilidade", disse a analista política Shila Vilker, diretora da consultora Trespuntozero.
A Trespuntozero mediu o impacto do escândalo de corrupção na imagem do Governo, sendo que para 62,5% dos entrevistados, "os áudios refletem factos graves de corrupção no Governo". Por isso, para 57%, o Governo é mau ou muito mau, enquanto 39,9% considera bom ou muito bom - uma queda de mais de dez pontos percentuais, face aos 50% de há um mês.
A consultora Opinaia detetou uma queda de seis pontos percentuais na imagem positiva de Milei, de 51% para 45%. Na mesma proporção, aumentou a negativa, de 49% para 55%.
Também a consultora Aresco, a preferida de Milei e frequentemente contratada pelo Governo, obteve dados semelhantes: a imagem positiva de Milei caiu de 50% para 44%, enquanto a negativa subiu de 47% para 53%.
"Quando eu ouvi os áudios, senti impotência, dor e vergonha alheia. É algo muito triste para as pessoas com familiar portador de deficiência. E, para uma pessoa que vive a falar de honestidade, de que veio a salvar o país, é bastante miserável. É pura miséria humana", concluiu Alicia Reina.