A comunidade internacional revelou ter dois pesos e duas medidas ao condenar de imediato os ataques do Hamas a Israel mas hesitando em acusar Telavive de crimes de guerra, critica a Human Rights Watch (HRW) num relatório.
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No seu relatório anual, que analisa a situação dos direitos humanos em cerca de 100 países durante o último ano, a organização não-governamental (ONG) internacional sublinha as reações ao conflito em curso na região do Médio Oriente para afirmar que o sistema de direitos humanos está sob ameaça.
O ataque de 7 de outubro realizado por combatentes do grupo islamita palestiniano Hamas contra Israel foi um acontecimento "terrível" que matou centenas de israelitas civis e fez mais de 200 reféns, incluindo crianças, pessoas com deficiência e idosos, segundo lembra a diretora-executiva da ONG de defesa dos direitos humanos, Tirana Hassan, citada no relatório.
"Muitos países condenaram rápida e justificadamente estes atos horríveis", adianta a representante, sublinhando, no entanto, que muitos dos Governos que condenaram os crimes de guerra do Hamas mostram-se hesitantes em qualificar as medidas de retaliação israelita como crimes de guerra. "O Governo de Israel respondeu cortando água e eletricidade aos 2,3 milhões de habitantes civis de Gaza e deixando entrar apenas 'gotas' de combustível, alimentos e ajuda humanitária", afirma.
Um comportamento que, segundo a diretora-executiva da HRW, é "uma forma de punição coletiva que constitui um crime de guerra".
Israel também tem bombardeado a Faixa de Gaza onde, segundo o governo local liderado pelo Hamas, já foram mortas mais de 23 mil pessoas, a maioria das quais civis. Além disso, prossegue Tirana Hassan, "os militares israelitas ordenaram que mais de um milhão de pessoas de Gaza saísse das suas casas e bombardearam áreas densamente povoadas com armas pesadas, matando milhares de civis, incluindo crianças".
Israel, denuncia ainda a representante da ONG, "usou fósforo branco, uma substância química que queima a carne humana e pode causar sofrimento ao longo da vida, tanto em Gaza como no sul do Líbano".
Mas muitos Governos mostraram "relutância em denunciar os abusos do Governo israelita", critica. Essa posição advém, na sua opinião, do facto de os Estados Unidos e a maioria dos Estados-membros da União Europeia (UE) se terem recusado a apelar ao fim do bloqueio israelita de 16 anos em Gaza e a reconhecer os crimes contra a humanidade realizados por Israel através do sistema de 'apartheid' e de perseguições a palestinianos. "Estas indignações seletivas minam os direitos humanos não só dos palestinianos em Gaza como dos uigures na China e de qualquer pessoa no mundo que necessite de proteção", sublinha a responsável.
De acordo com Tirana Hassan, não é só em Israel e na Palestina que a defesa dos direitos humanos é trocada por ganhos políticos. A situação "é óbvia quando muitos Governos não falam abertamente sobre a intensificação das repressões do Governo chinês, com detenções arbitrárias de defensores dos direitos humanos e controlos cada vez mais rigorosos sobre a sociedade civil, os meios de comunicação social e a Internet, especialmente em Xinjiang e no Tibete", refere.
O silêncio mantido por muitos países perante violações dos direitos humanos como estas "envia a mensagem de que vale a pena proteger a dignidade de algumas pessoas, mas não de todas" e que "algumas vidas são mais importantes do que outras", lamenta a diretora-executiva. "O efeito destas inconsistências é abalar a legitimidade do sistema no qual confiamos para proteger os direitos de todos" e permitir que "Governos como os da Rússia e da China tentem remodelar a ordem, despojando-a dos valores dos direitos humanos" para que "não possam ser responsabilizados pelos seus abusos", conclui Tirana Hassan.
Rússia cometeu crimes de guerra e tortura
A Rússia cometeu em 2023 crimes de guerra, tortura e aumentou a repressão a qualquer oposição ao regime, apesar de o país já ser o mais sancionado do mundo, denuncia hoje a Human Rights Watch no seu relatório anual.
No relatório, a organização aponta a Rússia como um dos Estados onde os abusos mais aumentaram, referindo que, ao longo do ano, "as forças russas cometeram crimes de guerra e outras atrocidades na Ucrânia", realizaram "ataques indiscriminados e desproporcionais" que provocaram a morte ou ferimentos graves a civis e "destruíram infraestruturas e instalações vitais de significado cultural e histórico".
A Human Rights Watch (HRW) adianta ainda que o uso generalizado de tortura pelas forças russas e os ataques contínuos a infraestruturas de energia estão a ser investigados pelas Nações Unidas como crimes contra a humanidade. "Os impactos dos direitos humanos da guerra da Rússia na Ucrânia eclipsaram todas as questões de direitos na Ucrânia", considera a HRW, apontando que, até setembro, pelo menos 9614 civis ucranianos tinham sido mortos no conflito, desencadeado pela ofensiva militar russa iniciada em fevereiro de 2022, e havia mais de 17.500 feridos.
Além disso, recorda a organização no relatório de 2023, o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu em março passado um mandado de captura internacional para o Presidente russo, Vladimir Putin, e para a sua comissária para os Direitos da Infância, Maria Lvova Belova. O TPI acusa ambos de crimes de guerra relacionados com a deportação forçada de menores ucranianos para território da Rússia.
Internamente, as autoridades russas redobraram as repressões à sociedade civil e, sobretudo, a ativistas ou críticos de Putin ou da guerra na Ucrânia. "O Kremlin [Presidência russa] adotou uma nova legislação repressiva, emitiu sentenças de prisão para punir discursos pacíficos antiguerra e extinguiu vários grupos de direitos humanos importantes", descreve a HRW no documento.
As autoridades russas continuaram a usar acusações administrativas como "desacreditação" ou "disseminação de informações falsas" para processar criminalmente e deter pessoas, acrescenta a ONG. Segundo o grupo de direitos humanos OVD-Info, citado no relatório, pelo menos 130 pessoas foram detidas com base nestas acusações e mais de 350 processos criminais foram abertos.
As autoridades também usaram mais a legislação que criminaliza "organizações indesejáveis" na Rússia para fechar a imprensa independente e multiplicaram os processos por traição e espionagem. "Só na primeira metade de 2023, o FSB [Serviço Federal de Segurança, o sucessor do soviético KGB] abriu mais casos de traição do que na totalidade de 2022", adianta a HRW, lembrando que, em abril, foi aprovada uma lei que reforçou as penas por crimes deste género.
A liberdade de reunião manteve-se, em 2023, extinta na Rússia, já que as autoridades usam as restrições impostas para combater a covid-19 como pretexto para proibir protestos, apesar de já terem levantado todas as outras restrições relacionadas com a pandemia.
Além disso, indica a HRW, as autoridades russas também alargaram a legislação sobre "agentes estrangeiros", conceito pejorativo que condena os visados a buscas da polícia e outras medidas punitivas, adicionando pelo menos 192 pessoas e organizações ao registo, que já totaliza mais de 700 nomes.
A HRW refere ainda que o motim fracassado do grupo de mercenários Wagner levou o Presidente Putin a admitir que a organização, conhecida pelas suas graves violações de direitos humanos e por recrutar condenados russos para lutar na Ucrânia, foi completamente financiada pelo orçamento de Estado da Rússia.
UE e Estados redobraram repressão a migrantes em 2023
A União Europeia (UE) e os Estados-membros redobraram, em 2023, as medidas repressivas de dissuasão de imigração e as alianças com países que desrespeitam os direitos humanos, acusa a Human Rights Watch (HRW) no seu relatório anual, hoje divulgado.
Apesar de os Estados-membros e as instituições da UE terem criado, em 2023, novos compromissos e renovado os existentes para defender e proteger os direitos dos migrantes, "a vontade de os cumprir ficou, muitas vezes, aquém" do acordado, destaca o documento da organização não-governamental (ONG) de defesa dos direitos humanos. "Os grandes naufrágios ao largo de Itália, em fevereiro, e da Grécia, em junho, destacaram as consequências mortais da abordagem da UE à migração" que atravessa o Mediterrâneo para entrar na Europa, refere a HRW.
O naufrágio de fevereiro, perto da cidade italiana de Steccato di Cutro, provocou pelo menos 70 mortos, embora o número possa ser maior, já que estavam cerca de 180 migrantes no barco que partiu da Turquia e apenas 80 pessoas foram resgatadas com vida.
No caso ocorrido ao largo da Grécia, considerado um dos maiores naufrágios do Mediterrâneo Oriental das últimas décadas, foram encontrados 82 corpos, mas entre as cerca de 750 pessoas que partiram da Líbia na traineira envolvida no acidente, apenas 104 foram retiradas vivas do mar.
Neste caso, os sobreviventes decidiram processar as autoridades por não os terem resgatado antes da embarcação se afundar, já que a guarda costeira grega acompanhou parte da viagem, da Líbia para Itália.
Apesar das tragédias e dos apelos para que os Estados cumpram os seus deveres de direito humanitário e ajudem migrantes em risco, os países e a UE continuam a optar por acordos para manter os refugiados em Estados terceiros, mesmo que estes sejam abusivos dos direitos, e a dificultar o trabalho das organizações de resgate, aponta a HRW. "A União Europeia aprofundou a sua cumplicidade com os abusos feitos a migrantes na Líbia ao entregar pelo menos cinco barcos à guarda costeira da Líbia, medida que a ONU classificou como possível crime contra a humanidade", acusa a ONG no relatório, acrescentando que, em julho, "a UE prometeu 105 milhões de euros à Tunísia para gerir migrantes, apesar dos graves riscos para os refugiados e requerentes de asilo e do discurso racista e xenófobo praticado ao mais alto nível no Governo tunisino".
As ONG de resgate de migrantes no mar, que já enfrentavam obstruções, receberam, no ano passado, ordens da Itália para passarem a desembarcar os migrantes na Tunísia.
Num ano em que, segundo denuncia a HRW, a Comissão Europeia "reiterou políticas abusivas e ineficazes", Bruxelas voltou a mostrar que tem dois pesos e duas medidas em relação aos migrantes, ao prorrogar a proteção temporária e vários benefícios aos 4,2 milhões de refugiados da guerra na Ucrânia.
A organização de defesa dos direitos humanos refere ainda que, no ano passado, Estados da UE - como a Bulgária, a Croácia, a Polónia, a Grécia, a Hungria, a Lituânia e a Letónia - continuaram a repelir ilegalmente migrantes das suas fronteiras, enquanto a Itália e Malta facilitaram interceções no mar e expulsões para a Líbia.
Num ano em que, de acordo com a Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), quase 250 mil pessoas chegaram irregularmente às fronteiras do sul da UE e pelo menos 2.594 morreram ou desapareceram na tentativa de atravessarem o Mediterrâneo - números que, em ambos os casos, ficam muito acima do total de 2022 --, aumentou também "a discriminação e a intolerância", tanto em relação aos migrantes mas também em relação às estruturas de apoio, relata a HRW.
A Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA) "observou uma pressão crescente sobre grupos que protegem os direitos dos migrantes e refugiados nas fronteiras da Grécia, Itália, Hungria, Letónia, Polónia, entre outros", refere a organização no relatório.
Mas a discriminação na UE não aumentou apenas em relação aos migrantes, lamenta a HRW. "A Comissão contra o Racismo e a Intolerância do Conselho da Europa identificou discriminação contínua contra lésbicas, gays, bissexuais, transgénero e intersexuais [comunidade LGBTI], ciganos e migrantes como tendências principais na Europa, incluindo nos Estados-membros da UE", recorda a organização de defesa dos direitos humanos.
Por outro lado, seis dos Estados da UE - Bulgária, República Checa, Hungria, Letónia, Lituânia e Eslováquia -- ainda não ratificaram a Convenção sobre Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (Convenção de Istambul) e o Grupo de Trabalho do Parlamento Europeu contra o Antissemitismo sublinhou a necessidade de combater este tipo de discriminação no espaço comunitário.
Os relatos de antissemitismo "aumentaram significativamente em França e na Alemanha após os ataques realizados em 7 de outubro pelo grupo islamita Hamas e a resposta de Israel", denuncia a HRW citando um relatório da FRA, acrescentando que "há também relatos preocupantes de um aumento de incidentes islamofóbicos nos Estados da UE" em 2023.
A organização aponta ainda o dedo a dois países do bloco europeu em particular - Hungria e Polónia - pela "persistência dos seus Governos no desrespeito pelos valores democráticos e direitos humanos". "Nem a Hungria nem a Polónia receberam fundos de recuperação da UE relacionados com a pandemia de covid-19 por não cumprirem os parâmetros", afirma a HRW, adiantando que, na Polónia, continuam as violações relacionadas com o sistema de Justiça, enquanto na Hungria se mantém a corrupção, a dependência judicial e a falta de transparência nas decisões.