Nas últimas horas, Israel orquestrou dois ataques em duas frentes diferentes. A capital libanesa, Beirute, sofreu um ataque na terça-feira, que visava o comandante do grupo xiita Hezbollah Fouad Chokr. Esta quarta-feira, o exército atacou a capital do Irão, Teerão, e matou o comandante do Hamas Ismail Haniyeh.
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Em declarações ao JN, Sandra Fernandes, professora da Universidade do Minho com doutoramento em Ciência Política e epecialização em Relações Internacionais, admitiu que os recentes ataques do exército israelita não terão o impacto pretendido de "aniquilar o Hamas", embora mostrem que o conflito está a "escapar das mãos" dos EUA e a diminuir a esperança de um cessar-fogo.
Que consequências é que os dois ataques de Israel nas últimas horas podem trazer?
Relativamente aos objetivos de Israel de aniquilar o Hamas, não me parece que o resultado militar seja particularmente forte. Porquê? Porque é sabido que quando se cortam as cabeças dos dirigentes dos grupos terroristas, já há seguidores, já há pessoas prontas para assumirem o poder. E, portanto, o Hamas não tem só o Haniyeh como dirigente, que pode ser visto como o número um ou o número dois, em função da forma como quisermos olhar mais para o braço político ou para o braço militar do Hamas.
É um impacto emocional muito grande. As populações israelitas e até americanas são positivamente sensíveis, digamos assim, a esses ataques extremamente focados em que as cabeças dirigentes caem. No entanto, eu não tenho uma leitura de grande eficiência na alteração do curso da guerra. Antes pelo contrário, porque coloca o Irão numa posição de humilhação, ainda coloca mais tensões na relação com o Hezbollah, que é outro grupo armado terrorista que combate Israel a partir do Líbano.
Ontem foi a morte do comandante do Hezbollah no Líbano, hoje foi a morte do dirigente do Hamas no Irão, e portanto temos aqui várias mortes extremamente focadas, mas que são propícias a reações, à necessidade, digamos assim, de reações para que os atores visados não percam a face. Nomeadamente o Irão, mas na verdade o próprio Catar, porque Haniyeh, que foi morto hoje, que é considerado internacionalmente um terrorista, está na lista negra já há vários anos, não é? Era um alvo a abater, não há qualquer dúvida, por parte de Israel e não só, mas em particular Israel. E ele estava auto-exilado desde 2019 no Catar. E nós sabemos que o Catar é o país-chave das negociações em curso para o cessar-fogo e o regresso dos reféns que ainda estão em Gaza. Portanto, matar Haniyeh é, na minha perspetiva, colocar numa perspetiva muito dilatada de tempo o resultado de negociações para o cessar-fogo. E é completamente em contrapé daquilo que o aliado americano quer, que é acalmar a situação, precisamente dar espaço para as negociações. E portanto, essas mortes tão mediáticas, tão visíveis, ainda por cima em território iraniano, no caso de hoje, não são propícias a uma acalmar da situação e ao diálogo necessário para negociar o seu cessar-fogo.
Podemos esperar uma reação forte do Irão?
Podemos. Nós já vimos este ano uma sequência dessa natureza, não é? E a morte, tudo bem que a morte no caso foi do iraniano, mas não em território iraniano. E aqui é a morte de um palestiniano, um terrorista do Hamas, em solo iraniano. Estamos mesmo num momento de suspense a aguardar a reação do Irão.
Aliás, já o próprio dirigente da Autoridade Palestiniana, que sabemos que é a força política que mais perdeu terreno relativamente aos palestinianos, Mahmoud Abbas, condenou a morte de Haniyeh. É de relembrar que Haniyeh e a Autoridade Palestiniana, melhormente, Mahmoud Abbas, não eram propriamente os melhores amigos do Mundo. Porque Haniyeh chegou a ser primeiro-ministro em Gaza e o primeiro-ministro da Autoridade Palestiniana até foi expulso pela força de Gaza. Nós sabemos que Gaza é dominada pela Hamas, portanto, não são propriamente aliados políticos e mesmo assim Mahmoud Abbas já se expressou politicamente a condenar a forma como Haniyehe foi morto por Israel.
Como é que os recentes ataques afetam a imagem de Netanyahu em Israel?
Internamente não o desfavorece. Por exemplo, a falha dos serviços de informação israelitas está na base do 7 de outubro e o facto de, agora, mostrar que são capazes de abater alvos muito específicos, e é preciso um serviço de informação muito eficiente para que isso aconteça, reforça a imagem de Netanyahu como um líder, um chefe de guerra.
Quais as repercussões dos ataques de Israel nas negociações de paz com o Catar?
Eu estou à espera até do endurecimento do próprio Catar, dado que o dirigente do Hamas que vive no seu território, porque na verdade Haniyeh vivia entre o Catar, Doah e a Turquia, mas sobretudo no Catar, ficou ali privado do seu papel de intermediário entre as potências regionais e não regionais. Portanto, nesse aspeto não ajuda de todo.
Qual é posição tomada pelos Estados Unidos?
Os Estados Unidos já tomaram posição, o secretário de Estado norte-americano Antony Blinken já falou. Disse que não sabiam nada, não têm nada a ver com o que aconteceu e continuam a apelar à calma e às negociações, mas claramente, do meu ponto de vista, estas declarações mostram que a situação lhes está completamente a escapar das mãos. É exatamente o contrário, estas ações são exatamente contrárias àquilo que é o objetivo dos Estados Unidos de acalmar a situação. Ou seja, se o objetivo é negociar o cessar-fogo, claramente essas mortes colocam essas negociações de cessar-fogo muito mais distantes.