Contexto geopolítico ameaça escolha do sucessor de Francisco, o "agitador de águas"
A herança reformista de Francisco poderá ser desafiada dentro e fora da Igreja Católica, devido às diferentes sensibilidades dos clérigos e ao atual contexto geopolítico. Ao JN, o Patriarca de Lisboa destaca a simplicidade do Papa que foi um "agitador de águas".
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O legado do Papa que "agitou as águas" e desfez fronteiras, das mais tangíveis às mais espirituais, mereceu um aplauso global e unânime. Todos reconhecem o mérito, a ousadia ou a coragem do líder reformista, que lutou contra a pobreza, a corrupção e a pedofilia, abriu portas às mulheres e aos homossexuais e deu voz aos mais pobres. Mas com o Mundo a navegar num desafiante cenário geopolítico, o futuro da sucessão é complexo e recheado de tensões dentro e fora da Igreja Católica.
“Espero que não se volte atrás na renovação que o Papa Francisco operou, mas claro que há ameaças. Há perigos porque muitos dizem que a Igreja aberta a todos torna-se numa Igreja líquida, que se dissolve”, indica Anselmo Borges. Além da divisão interna, o padre e professor de Filosofia da Universidade de Coimbra considera que o futuro será talhado por pressões de grandes poderes económicos e políticos “que vão tentar influenciar” a sucessão. “Vivemos não só numa época de mudança, mas também uma mudança de época com várias tensões geopolíticas. É um tempo essencialmente de complexidade”, afirma Anselmo Borges, lembrando que vários líderes mundiais, como Donald Trump e Vladimir Putin, se pronunciaram sobre a morte do Pontífice.
A apreensão é partilhada pelo presidente da direção da Associação Ateísta Portuguesa (APP). Para João Lourenço Monteiro, a escolha de um Papa menos liberal, aliada ao conservadorismo político de países como os Estados Unidos da América, a Turquia ou a Hungria, terá “implicação nos direitos e garantias já conquistados pela sociedade”. Apesar de considerar que Francisco poderia ter ido mais longe e que "ziguezagueou" em algumas áreas, o dirigente reconhece que o Papa fez avanços "numa organização que tentar conjugar diferentes sensibilidades".
Um Papa reformista que deixou portas por abrir
“Se vier um Papa mais conservador, pode pôr todos esses avanços em risco porque apesar de ser chefe de um Estado pequeno, a sua influência ainda é grande”, alerta. João Lourenço Monteiro é da opinião que ao longo do seu papado, Francisco teve "dois tipos de discurso", um deles mais "coerente e recorrente", relacionado sobretudo com a necessidade de nos adaptarmos às alterações climáticas e de preservarmos a biodiversidade, e outro "positivo, mas oscilante", no que diz respeito a temas como a comunidade LGBT, os abusos sexuais de menores na Igreja e a luta contra a pobreza.
Não deixando de enaltecer o "carisma único" do Papa que estreitou fronteiras em ordem à paz, Anselmo Borges também é da opinião que o argentino deixou algumas portas por abrir. "Eu estimava de coração o Papa Francisco, mas acho que ele deixou para o futuro duas realidades fundamentais para a Igreja: acabar com a lei do celibato obrigatório e não discriminar as mulheres na presidência da Eucaristia", sustenta o padre católico.
Ao JN, o professor da Universidade de Coimbra revela que gostaria de ver o cardeal filipino Luis Tagle no Vaticano, "pelo espírito muito próximo de Francisco" e para trazer um "olhar asiático ao catolicismo". Anselmo Borges lembra que o Papa renovou o conclave que vai escolher o seu sucessor, "com cardeais que vêm de todo o Mundo". "A igreja tem múltiplas dimensões, múltiplas perspectivas. E a igreja tem de afirmar cada vez mais a sinodalidade defendida por Francisco", aponta o académico, sublinhando que o Papa lutou por uma "igreja aberta, onde todos somos corresponsáveis".
Caminho "irreversível" contra os abusos na Igreja
Apesar dos perigos, será difícil de anular uma parte do legado de Francisco, seja quem for o próximo líder do Vaticano. A coordenadora do Grupo Vita entende que o caminho “ímpar” feito por Francisco sobre os abusos sexuais é “irreversível”, uma vez que já há uma consciencialização disseminada no seio da Igreja Católica. “Se no início muitas das mudanças que iam ocorrendo eram fruto da pressão que vinha de Roma, neste momento há cada vez mais sensibilização e motivação interna nas dioceses e congregações religiosas”, partilha Rute Agulhas.
A responsável admite que há "algumas vítimas apreensivas" com um possível "regresso à estaca zero", mas afiança que tal facto é "pouquíssimo provável" porque o conjunto de mudanças impulsionado por Francisco - mas que começou ainda no pontificado anterior de Bento XVI - "têm vindo a solidificar-se nos últimos anos". "A partir do momento em que se levanta o véu de uma determinada problemática, em que se dá voz, se dá rosto e se dá visibilidade, é muito difícil voltar a colocá-la na gaveta dos tabus", aponta.
Porém, Rute Agulhas alerta que há ainda trabalho a fazer. "O Papa Francisco lançou as sementes e criou as raízes, mas esta é uma planta em crescimento que tem de ser regada, tem de ser cuidada. Os frutos já vão surgindo, mas podem haver muitos mais".
O "ar puro" trazido por Francisco
Independentemente de quem for o sucessor do Papa, Francisco foi um “agitador de águas” que obrigou os clérigos a questionarem-se, a envolverem-se e a saírem da sua zona de conforto. Para o patriarca de Lisboa, o legado maior do argentino foi o regresso à simplicidade, à genuinidade e até à ousadia de Jesus Cristo. “A atitude, o gesto e o pontificado do Papa Francisco marcou não só os últimos 12 anos, como fez-nos ver realmente como essa é a marca que Cristo quer para a Igreja neste tempo", afirma Rui Valério.
Ao JN, o patriarca de Lisboa ressalta que o futuro deve "ter em conta a circunstância e o contexto histórico" atual, num tempo onde é necessário uma "voz profética que nos interpela para olharmos para a luz e para sairmos da escuridão, para olharmos para o caminho e para sairmos do nosso comodismo". Tal como Anselmo Borges, Rui Valério destaca que o pontificado cessante procurou "recuperar a sinodalidade", ou seja, a participação de todos num caminho em conjunto. "O Papa Francisco, como sabemos, teve a coragem e o rasgo para, também ele, com algumas afirmações e até com alguns gestos profeticamente substanciados, ter mexido muito as águas. Portanto, o primeiro grande legado que o Papa Francisco nos deixou foi este ar puro que é o sopro do Evangelho".
Para Rui Valério, o conceito de "agitador de águas" não é "abstrato". O argentino teve a capacidade para inspirar, motivar e desafiar os clérigos - nomeadamente o próprio patriarca de Lisboa, que se se sentiu inspirado e interpelado pelo Papa - a envolverem-se em "situações que, até a um certo momento, existiam muito distantes, muito afastadas". "Esta é a marca da igreja de hoje que particularmente neste tempo é tão necessária: uma igreja em saída, que não é de autorreferencialidade, uma igreja que pulsa ao bater do coração da Humanidade, das suas necessidades e das suas carências".
Os temas do papado de Francisco
Corrupção
Em 2013, o Papa iniciou a reforma do Instituto para as Obras de Religião, conhecido por “Banco do Vaticano”, apertando o cerco aos crimes financeiros.
Abusos sexuais
Em 2019, Francisco aboliu o segredo pontifício para os casos de abusos sexuais de menores cometidos por clérigos.
Comunidade LGBT
O Pontífice afirmou que os casais homossexuais devem ter direito à união de facto e defendeu o sacramento aos divorciados.
Mulheres na Igreja
O argentino colocou a mulher no centro da reflexão da Igreja, permitindo que assumissem cargos governativos nos dicastérios (ministérios), mas fechou a porta ao sacerdócio.
Pobreza
Com uma imagem modesta e afastada de luxos, Francisco ergueu a voz pela justiça social e defesa dos mais desfavorecidos durante o seu papado.