Regime acusado de violações e ameaças à segurança internacional esteve um mês na presidência rotativa da Conferência de Desarmamento da ONU.
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O Estado-pária dirigido na retórica belicista de Kim Jong-un e tão frequentemente acusado pela comunidade internacional de violar todos os tratados e convenções de não-proliferação de armamento nuclear é a mesma Coreia do Norte que passou as últimas três semanas na presidência rotativa da Conferência de Desarmamento da ONU e que, em finais de maio, dias antes de tomar a direção da agência sediada no Palácio das Nações Unidas, em Genebra, andou a ensaiar mísseis de longo alcance e a testar os nervos da segurança mundial.
Esta que aparenta ser uma insanável contradição não é incomum nas margens do lago Léman: ainda recentemente, em 2018, a esmagadora maioria dos 65 países membros da Conferência do Desarmamento contestou a presidência da assembleia pela Síria. Nesse ano, também durante um mês, a liderança do organismo nascido em 1979 e vocacionado para a luta contra as armas químicas passou pelas mãos do regime de Bachar Al-Assad, suspeito de usar armas químicas no próprio país.
"Totalmente inútil"
ONG"s humanitárias também se insurgiram contra a denunciada incoerência, que não observa o cadastro dos estados-membros na hora de proceder à rotação da presidência. O mandato é atribuído por ordem alfabética dos nomes dos países em inglês, sem cuidar de verificar qualquer impertinência ética: a seguir à República Popular Democrática da Coreia vem a República Democrática do Congo. O R, de Rússia, calha em 2023.
Para lá de tudo isto, verifica-se que a Conferência é um palco de divergência total: não foi alcançado qualquer acordo desde o Tratado de Interdição Total de Testes Nucleares, assinado em 1996; em 2010, o então secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, nem se absteve de dizer que a organização representava "um enorme desperdício de dinheiro" para as Nações Unidas e que era "totalmente inútil".
O regulamento interno é apontado como responsável desta paralisia - entre outras cláusulas, determina que todas as decisões tenham de ser aprovadas por unanimidade, o que confere poder de bloqueio a qualquer um dos 65 países -, mas nem por isso se justifica o vazio do mandato norte-coreano. Nada, afinal, que se estranhe a Pyongyang: em 1993, por ordem do avô de Jong-un, o "Presidente Eterno" Kim Il-sung, a Coreia do Norte foi o único país a denunciar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear.
"O meu país ainda está em guerra com os EUA"
Decorridas três décadas, o regime de Pyongyang volta a ser contestado na Conferência de Desarmamento e ainda mais depois de o embaixador norte-coreano no organismo da ONU ter tomado posse com uma declaração bombástica: "O meu país ainda está em guerra com o Estados Unidos", soltou Han Tae-Song, a referir-se a um conflito que considera ainda aberto, apesar da declaração de cessar-fogo de 1953, que pôs fim aos combates e dividiu a península entre Norte e Sul.
Han também foi aplaudido - pela China e pela Rússia, tradicionais aliadas -, mas sai de cena sob muita mais condenação. A embaixadora australiana, Amanda Gorely, é uma das vozes mais corrosivas: "Continuamos muito preocupados com os atos irresponsáveis da Coreia do Norte, que continuam a enfraquecer a Conferência".
"O presidente toma nota da nota da sua declaração", respondeu o diplomata norte-coreano.
I Guerra Mundial: gás mata 90 mil
A primeira grande decisão Conferência do Desarmamento foi em 1993: após dez anos de negociações, concluiu a convenção que proíbe o desenvolvimento, produção, aquisição, armazenamento e transação de armas químicas. Foi o também o primeiro tratado a estabelecer, simultaneamente, a erradicação total de uma categoria inteira de armas de destruição massiva e um sistema de verifica e controlo do risco químico.
A entrada de químicos nos arsenais militares remonta a 1915 e à Primeira Guerra Mundial: a primeira vez que se ouviu falar de armas químicas foi nas trincheiras da Bélgica. Calcula-se que 90 mil pessoas tenham morrido na sequência de ataques com gás cloro.
Já nos anos 1980, o Iraque foi acusado de usar produtos químicos em ataques contra a população curda de Halabja. O Irão foi também denunciado pelo uso de armas biológicas. Ainda no século XX, o ataque de gás sarin no metro de Tóquio, em 1995, comprovou que as armas químicas passaram a fazer parte do arsenal de grupos terroristas, no caso, a seita Aum Shinrikyō.