Comunidade acredita que Ancara está por trás do atentado que vitimou três pessoas, o que impulsionou protestos violentos no centro de Paris.
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Uma mistura de choque e raiva invadiu a França na manhã desta sexta-feira, quando um homem abriu fogo no 10.º arrondissement, no centro de Paris, e matou três curdos, causando igual número de feridos. Não tardou a que a comunidade curda apontasse o dedo à Turquia, seguindo-se protestos violentos que obrigaram à intervenção da polícia. O presumível autor dos disparos, que foi detido e levado para o hospital, realizou o ataque junto a um centro cultural frequentado por pessoas do grupo étnico, o que leva as autoridades parisienses a crer que se terá tratado de um crime com motivações racistas.
"A comunidade curda foi atingida por um ataque terrorista. A situação política na Turquia e os desenvolvimentos relativos ao povo curdo levam-nos a acreditar que se trata de assassinatos políticos", declarou Agit Polat, porta-voz do Conselho Democrático Curdo na França (CDKF), citado pelo "Le Monde". O representante apontou a indignação dos curdos pelo facto de as autoridades francesas não tratarem o episódio como um ato de terrorismo, frisando que a comunidade não acredita que apenas esteja em causa "um simples ativista de extrema-direita", como foi especulado.
O CDKF instou ainda as autoridades do país a interromperem a "cooperação com os serviços de inteligência" da Turquia, descrevendo o posicionamento de Paris como "complacência". Em janeiro de 2013, três membros do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) foram assassinados na mesma zona da capital gaulesa, porém, há nove anos, o inquérito judicial revelou o "envolvimento" de membros dos serviços secretos turcos no ataque.
A organização anunciou uma manifestação para sábado, mas esta esta sexta-feira, logo após se conhecerem as origens das vítimas mortais, centenas de curdos juntaram-se perto do local do ataque para protestar contra a falta de proteção que têm recebido por parte do Executivo francês. "Erdogan assassino" foi uma das expressões entoadas pelos manifestantes, enquanto queimavam caixotes e erguiam barricadas, o que obrigou ao uso de gás lacrimogéneo por parte da polícia.
Uma pessoa "retraída"
Tendo em contas as informações reveladas pela polícia de Paris, sabe-se que o suspeito, identificado como William M., é um homem de 69 anos que agiu de forma solitária, porém, que conta com antecedentes criminais. O antigo maquinista, que terá nacionalidade francesa, é conhecido pela Justiça do país "por atos de violência", sendo que o último terá ocorrido em 2021.
Em dezembro do ano passado, foi detido por ter golpeado, com recurso a uma espada, várias pessoas que estavam refugiadas num acampamento de migrantes, localizado nos arredores da conhecida sala de espetáculos Accor Arena, em Paris. O homem voltou a viver com os pais, um casal de idosos, após ter sido libertado da prisão preventiva há poucos dias, altura em que foi colocado sob vigilância judicial.
Rapidamente as autoridades dirigiram-se para casa dos progenitores do suspeito, onde levaram a cabo uma investigação da qual ainda não se conhecem detalhes. À AFP, o paí de William M. mostrou-se surpreendido com a atitude do filho. Além de o descrever como uma pessoa "retraída", o nonagenário recordou que, de manhã, o homem terá saído de casa "sem dizer nada".
Debate interno
Ainda que a promotora de Paris, Laura Beccuau, tenha informado que "não há evidências" que liguem o antigo maquinista a "qualquer movimento ideológico extremista", não tardou a que políticos de diferentes quadrantes associassem o crime à extrema-direita, abrindo margem para um debate interno em França.
Anne Hidalgo, presidente da Câmara de Paris, e militante do Partido Socialista francês, sugeriu que "a comunidade curda foi alvo de assassinatos cometidos por um militante de extrema-direita".
Por outro lado, o ex-candidato conservador à presidência da República, Eric Zemmour, acusado de incitação ao ódio racial em janeiro, frisou descontentamento através de uma publicação, na qual lança críticas à Justiça francesa: "Um homem que nunca deveria ter sido libertado", escreveu, em referência ao suspeito.
Entrevista a Carlos Pereira, jornalista português em França e diretor do Lusojornal
Os curdos têm razões para se sentirem inseguros em França?
O ano passado houve um incidente em que morreram duas ativistas curdas. Na altura, os curdos já acusaram a Turquia de estar por trás destes assassinatos. Agora, as pessoas reagem e não têm memória curta. Ainda na semana passada houve uma manifestação em Marselha, sendo que o que aconteceu hoje [ontem] é uma forma de mostrarem a causa curda.
Qual era o ambiente vivido em Paris após o ataque?
Uma coisa é Paris outra coisa são as ruas junto ao local. Na cidade, as pessoas andavam na rua normalmente. Já naquele sítio, notou-se que este ataque foi o rastilho que intensificou os protestos já existentes habitualmente. O ataque provocou uma manifestação muito violenta e houve confrontos que deixaram vários polícias feridos, já que inicialmente muitos agentes nem estavam equipados devidamente. Ainda assim, a informação que tenho é que poucas horas depois do ataque as coisas acalmaram.
O ataque pode espoletar uma situação de tensão entre turcos e curdos?
Espero que não. Mas é possível que haja um reacendimento das tensões. Por norma, há tensões entre as diferentes fações, mas nunca chegaram a atos de violência pública. Ainda assim, é necessário que o país assuma uma posição clara em relação ao povo curdo.