Democrata está à altura do momento e decreta: "É o maior falhanço na história da América!". Republicano faz passar a mensagem melhor que Trump, mas também atropela factos. Pandemia, justiça e saúde dominam discussão de candidatos a vice-presidente. Mas depois uma mosca pousou no cabelo de Pence... Faltam 27 dias para as eleições.
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Depois da cacofonia gritada e do caos corrido de insultos do 1.º debate há uma semana, principalmente da parte de Donald Trump, presidente dos EUA e candidato republicano à reeleição, que pareceu sempre um macho febril a interromper 71 vezes o pretendente democrata Joe Biden, que lhe chamou palhaço e o mandou calar, a expectativa do debate dos vice-presidentes era pelo nível da simples civilidade.
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Kamala Harris, 55 anos, democrata, mulher e negra, e Mike Pence, 61, republicano, evangélico e branco, cumpriram a cortesia pelos espectadores: o debate foi civilizado. Não foi exatamente cortês, mas foi brando, quase adestrado e meio manso - pelo menos pela bitola do circo político americano. O destom veio de Pence e dos abusos de tempo de Pence, que nunca conseguiu encaixar respostas concluídas no tempo que tinha à disposição, insistindo na ultrapassagem e na infração. Não por acaso: a frase que a moderadora Susan Page, jornalista veterana do diário "USA Today", mais vezes usou foi "senhor vice-presidente o seu tempo acabou", que repetiu em ocasiões duas, três, quatro vezes, enquanto Pence continuava a papear.
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Três temas foram fulcrais: a pandemia do coronavírus que na América matou mais de 212 mil pessoas e infetou já 7,7 milhões; a situação da Justiça com a nomeação iminente, apressada pelo partido republicano, de Amy Coney Barrett para o Supremo Tribunal, que inclinará a instituição para a Direita; e o acesso dos americanos às condições de saúde em segurança social e financeira, com a ameaça de Trump, planante, em aniquilar o Obamacare, que deu seguro a milhões de americanos pobres e com pré-condições de debilitação.
Kamala venceu Pence. Talvez, no cômputo geral, tenha sido só ligeiramente mais bem sucedida, mas, sabendo-se que a candidatura republicana está mais de 10% atrás da democrata, e, a menos de um mês da eleição (3 de novembro) que é preciso estancar a sangria e o desnorte presidencial, então a vitória da senadora Kamala é ressonante - e não só porque se aguentou, mas também porque é uma mulher e também porque é negra e porque se for eleita será a primeira nessa histórica condição.
O debate decorreu na universidade de Utah, em Salt Lake City, com os debatentes sentados, distanciados a 12 pés (3,6 metros) e com duas grandes barreiras de acrílico erguidas entre eles. A moderadora esteve bem - os candidatos permitiram-no.
A afronta à factualidade
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A pandemia, agora que Trump apanhou covid-19, a doença respiratória aguda causada pelo coronavírus (quando?, de quem?, quantas pessoas já infetou?, e por que não cumpre isolamento?, e quarentena?, e por que não usa máscara?, e por que não se distancia? - quem sabe não diz), está a dominar a campanha e dominou o debate.
Foi aqui, logo a abrir, que Kamala (lê-se "kâmâla) se saiu melhor. Disse as letras todas: "É o maior falhanço na história da administração presidencial do nosso país!". Ponto. E exclamação. E depois sublinhou os mortos, os infetados, os negócios em que 1 em cada 5 estão fechados, os 30 milhões de desempregados em sete meses. Fleumática, sorridente, cheia de calidez, Kamala não deixou de levantar sobrancelhas, de franzir os lábios e lançou vários olhares fulminantes ao seu oponente. Usou fato preto, blusa preta, pérolas brancas e falou frequentemente para a câmara, para os eleitores onde ainda haverá 11% de indecisos, como fez, e muito eficazmente, Joe Biden no 1.º debate.
É o maior falhanço na história da administração presidencial do nosso país!
Pence, fato preto, camisa branca, gravata vermelha, com o seu cabelo branco inamovível, é um personagem peculiar: impassível, fala de modo muito fleumático, cheio de amenidades, sereníssimo, é muito bom na prolação. Mas aquilo que diz, no conteúdo, nada difere do que diz Trump, é a mesma a afronta pela factualidade, só o modo é redondamente diferente. E foi aqui que Pence ganhou pontos e fez passar a mensagem ao eleitorado da Direita, porque o modo como ele fala parece mudar tudo aquilo que ele diz.
Na resposta à pandemia, Pence espalhou-se (não tinha como se segurar: a Casa Branca é hoje um foco aceso de covid e já haverá, pelo menos, 27 infetados; a América tem o recorde mundial de casos) e repetiu o mantra de intenções, sem mostrar um plano palpável e real, escudando-se nos "pensamentos e orações" e na vacina que o seu presidente quer apressar. O que tentou defender era indefensável: "Quando você diz que o que o povo americano fez nos últimos oito meses não funcionou, isso é um grande desserviço aos sacrifícios do povo americano" - e a afirmação caiu redonda no ridículo.
À segunda resposta de Kamala, ainda nos minutos iniciais, Pence tenta interrompê-la e ela diz com um daqueles olhares: "Senhor vice-presidente, eu estou a falar" - e também esta frase, como a mosca que pousou mais à frente no elmo capilar de Pence, já se multiplica internet afora em "memes" que gritam segurança e autoridade.
"Você tem direito à sua opinião mas não aos seus factos"
Pence, sublinhe-se, usou e abusou dos "talking points" republicanos e muita dessa mensagem chegou ao destino, com uma linha férrea de ataques cerrados sobre os impostos que os democratas querem alterar, assustando as famílias, atacando o paradigma do New Green Deal que "vai roubar empregos e afundar indústrias de exploração tradicionais", abordando bem a questão do Supremo Tribunal que Trump falhou contra Biden na semana passada. A dado passo, confronta Kamala: "Mas, diga, vai querer aumentar o número de juízes no Supremo para mais de nove? O Supremo tem nove juízes há 150 anos! Diga, diga agora, diga aqui". E aqui Kamala saiu-se menos bem, como Biden já se tinha saído, e não deu uma resposta clara se é, de facto, intenção dos democratas alargar o número de juízes no Supremo, agora que ficarão em minoria de nomeações.
Um dos momentos perduráveis da noite foi na questão da saúde, quando Kamala emitiu um alerta grave sobre as intenções do governo Trump, que quer desmantelar o Affordable Care Act, conhecido como Obamacare, que evita que as seguradoras rejeitem utentes com doenças pré-existentes, e Kamala fez com que os eleitores soubessem disso. "Se você tem uma doença cardíaca, diabetes, cancro da mama, eles vêm contra si. Se você ama alguém que tem uma doença pré-existente, eles vão vir contra si". E aqui marcou pontos junto das mulheres suburbanas, que decidirão em boa parte a eleição.
Há outro ponto em que Mike Pence claramente perdeu: abusa do tempo e, pior, esquivava-se às respostas. Será factual: em todas as questões diretamente colocadas, o republicano não terá respondido diretamente a nenhuma, preferindo sempre fazer passar os "talking points" do partido. E faz isso com grande mestria, ele que foi advogado e foi animador de rádio e é pomposamente magníloquo, é o rei do esquivamento.
Mas a sua intervenção pior fica agarrada a uma frase que repetiu quatro ou cinco vezes, com grande desplante: "Você tem direito à sua opinião, mas não aos seus próprios factos", ignorando com grande desfaçatez que o presidente Trump é um mentiroso compulsivo comprovado.
Se a vacina for recomendada por cientistas, tomarei, claro. Se a vacina for recomendada por Donald Trump, claro que não tomarei
Kamala voltaria a suplantar Pence quando lhe perguntaram se tomará a vacina para a covid que, diz uma sondagem recente, metade dos americanos não quer tomar. "Se a vacina for recomendada por cientistas, tomarei, claro. Se a vacina for recomendada por Donald Trump, claro que não tomarei". E Pence, na resposta, exigiu, caindo outra vez na manobra da projeção, isto é, acusando os outros daquilo que ele próprio faz: "Senadora, só lhe peço, pare de brincar à política com a vida das pessoas. A realidade é que teremos uma vacina, acreditamos, antes do final deste ano".
Vitória de Kamala clara, diz CNN
O que é ganhar um debate? É melhorar a posição em que se estava. Nesse pressuposto, Kamala Harris ganhou a Mike Pence - é o que diz a "sondagem instantânea" da CNN feita entre espectadores pré-identificados (38% de democratas, 33% de indecisos e 29% de republicanos). Kamala teve 59%, Pence teve 38%. É a imagem que correspondia aos candidatos antes do debate, cujos números pouco variaram: 56% diziam que Kamala ia ganhar e 41% eram as hipóteses de Pence triunfar.
E depois: uma mosca entra no debate
E depois aconteceu aquele momento da mosca. Cerca do minuto 65 do debate de 90 minutos, uma mosca preta pousou no cabelo branco de Pence e ali ficou internada, muito contrastante, durante dois minutos inteiros sem que ele a sacudisse. O Twitter explodiu instantaneamente em piadas, muitas delas impublicáveis sobre a atração fatal dos insetos dípteros pelos dejetos, mas a melhor veio de Joe Biden, muito rápida: o candidato presidencial democrata publicou logo uma fotografia sua com uma raquete mata-moscas na mão, a sorrir meio malicioso.
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Aparentemente, a raquete mata-moscas já integrou o novo merchandising democrata e está a ser vendida em versão azul, a cor do partido moderado, com o slogan "A verdade sobrepõe-se às moscas" - e outros trocadilhos com justaposições em que se pediam donativos: "Contribua com 5 dólares e ajude esta campanha a voar". Foi o "momento meme" por excelência e continua a fazer "buzz" e continuará.
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Mas depois da hashtag #fly, outra surgiu e fez tendência também: #redeye (olho vermelho). Era de novo dirigida a Mike Pence: o vice-presidente tinha um olho particularmente rubro, a parecer progressivamente pisado de vermelhidão. É um dos sintomas de covid, mas Pence diz que testou negativo. Será?
Sondagens eleitorais: Biden melhor que nunca
De acordo com as previsões do site FiveThirtyEight, Joe Biden tem 84 em 100 hipóteses de vencer a eleição presidencial; os democratas têm 68 em 100 possibilidades de virar o Senado a seu favor (o Senado é hoje de maioria republicana); e o partido democrata tem 94 em 100 pontos de manter a Câmara dos Representantes. No geral, há 65 em 100 hipóteses de que os democratas tenham o controle total do governo federal após esta eleição.
A esperança dos democratas - e o temor dos republicanos - por outra onda azul continua a crescer. Uma sondagem da CNN/SSRS dá a Joe Biden uma vantagem média nacional de 16 pontos. Setorialmente, nos estados basculantes, a Universidade de Monmouth também dá a Biden um proveito de 11 pontos na Pensilvânia num cenário de alta afluência às urnas (8 pontos com baixa participação). A Quinnipiac University diz que Biden subiu na Pensilvânia 13 pontos, 11 pontos na Florida e 5 pontos em Iowa.
O estudo Siena College/New York Times coloca Biden em 45% e Trump em 44% no Ohio e deu a Biden uma vantagem de 6 pontos em Nevada. E a Marquette Law School, na sondagem em Wisconsin, dá a Biden 47% e a Trump 42% - os resultados no Ohio e Wisconsin são especialmente significativos: Trump precisa vencer nestes "swing states" para garantir um segundo mandato.
Dia 15 há mais
O próximo debate é de novo com Trump e Biden e, à partida, é dia 15 em Miami, na Florida. Terá um formato diferente: em assembleia, com perguntas dos eleitores. As duas campanhas vão ainda acertar detalhes sobre as mudanças a impor - porque Trump tem covid-19 - e poderá ser ao ar livre, com muito distanciamento. O terceiro e último debate, no formato do primeiro, será a 22 de outubro em Nashville, no Tennessee. Vai voltar o caos e o cacófato? A não ser para quem gosta de filmes espetacularmente inanes de ação, esperemos que não.