Gilmar Mendes foi duas vezes presidente do Supremo Tribunal Federal do Brasil, que ainda integra como decano (membro mais antigo). Mestre e doutor em Direito pela Universidade de Münster, na Alemanha, é docente da Universidade de Brasília e do Instituto Brasiliense de Direito Público. É uma figura central da sociedade brasileira e foi entrevistado, em Lisboa, no âmbito das atividades da Associação Portugal Brasil 200 anos.
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Nos últimos dez anos, nós portugueses, ficamos com a sensação de que o Brasil redescobriu Portugal. Acredita que a perceção dos brasileiros em relação ao nosso país, principalmente das suas elites, mudou na última década?
No ano passado, o Brasil celebrou os 200 anos da sua independência. Eu tive o gosto de participar em várias celebrações e de verificar uma grande diferença na forma como elas foram feitas pelo meu país e por Portugal. O antigo presidente Bolsonaro fez questão de aproveitar o momento de forma a fortalecer a sua própria agenda. Numa mensagem, muitas vezes agressiva, as celebrações no Brasil foram pretexto para atacar o Supremo Tribunal Federal e as instituições democráticas, em vez de servirem o propósito de uma celebração histórica. Em Portugal, onde tive o gosto de participar nas celebrações do Porto e de Coimbra, houve, de facto, um verdadeiro enaltecimento da independência do Brasil.
Na Associação Portugal Brasil 200 anos fizemos essa mesma celebração. Contando, inclusive, com a sua participação.
É verdade. A Associação e muitas outras entidades celebraram o aniversário da independência de várias formas. Esse é um fator indicador do grande momento que Portugal e o Brasil estão atravessando juntos. Os brasileiros vivem em Portugal e fazem hoje parte de todas as classes da sociedade portuguesa. Lembro-me de ler uma vez que um em cada 10 advogados em Portugal são brasileiros.
Não é só na advocacia que podemos verificar esse ratio. Com as estatísticas a indicarem 500 a 700 mil brasileiros a morar em Portugal, a ideia de que brasileiros representam 10% das pessoas que habitam em Portugal já não é impossível...
Sem dúvida. Quando estive em Cascais, o presidente da Câmara referiu que 20% dos habitantes do município eram brasileiros. Todos estes dados têm um significado enorme. Estão hoje abertas inúmeras oportunidades culturais e comerciais, neste canal aberto entre o Brasil e Portugal e até entre o Brasil e a Europa.
Acredita que Portugal poderá ter esse papel de mediador entre o Brasil e a Europa? Ou até entre o Mercosul e a União Europeia?
O Brasil sabe que Portugal, apesar de ser um país pequeno, tem uma dimensão política, tanto na Europa como no Mundo, muito relevante. António Guterres é o secretário-geral da ONU; Durão Barroso foi, durante muito tempo, presidente da Comissão Europeia; até o atual presidente da Câmara de Lisboa foi o comissário da pasta da Tecnologia, na União Europeia.
E sente que Portugal terá vontade de restabelecer a relação que já teve com o Brasil?
Acredito que sim. Tenho esta fé porque, sinceramente, só ouço manifestações de amizade e simpatia para com o Brasil e os brasileiros, tanto por parte do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, como do primeiro-ministro António Costa. Portugal foi o primeiro país europeu a defender o acordo União Europeia-Mercosul.
Acredita que esse mega-acordo é desejável, até para combater uma certa hegemonia económica americana?
Parece-me que sim. Falando especialmente sobre o Brasil, nós somos hoje um país com condições extraordinárias para aceitar o desenvolvimento. Temos capital, um grande mercado e um país que por si só tem uma dimensão continental. Eu acredito que os próximos tempos serão muito proveitosos para o Brasil e para os seus parceiros comerciais. Desde a reeleição do presidente Lula que o Brasil é olhado de outra forma pelo Mundo: basta verificarmos as centenas de representações internacionais presentes na sua tomada de posse.
Que livro ou livros recomendaria a um português para entender melhor o Brasil?
Há muitos livros. Lembro-me da "Casa-Grande & Senzala", de Gilberto Freyre; "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa; "Os Sertões", de Euclides da Cunha. Para quem tem intenções de penetrar a realidade brasileira de uma perspetiva histórica, a obra de Sérgio Buarque de Holanda ainda hoje me parece indispensável. Mas transpondo os livros, o que é essencial entre o português e o brasileiro é eles permanecerem em constante diálogo. Preservarem a afeição e a amizade entre Portugal e o Brasil, aprofundando os nossos vínculos. O que eu percebo, tendo vindo muitas vezes a Portugal e até, inclusive, morado aqui, é que há um orgulho genuíno, principalmente por parte das elites portuguesas, da sua relação com o Brasil. Como se o Brasil fosse a sua grande obra. Considero essa ideia muito interessante. Era preciso que nós [Brasil] também tivéssemos essa perceção.
A nossa grande obra é a língua portuguesa.
Sem dúvida.
*Colunista da "Folha de S. Paulo" e do JN
