Nos últimos anos, fenómenos sociais e económicos têm colocado múltiplas nações em situações de grande debilidade. Na maioria dos casos, os períodos de instabilidade resultam de grandes crises e da fragmentação das sociedades.
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A América Latina é uma das regiões do globo onde são reportados mais casos de instabilidade política. Dos golpes de Estado, às convulsões sociais e económicas, passando pelas destituições, os recorrentes episódios de desordem colocam as democracias em moldes ténues. A fragmentação dos partidos, a implosão de grupos políticos conservadores e a falta de conexão entre a liderança e a realidade social justificam parte do desgaste, que é transversal, indicam analistas.
Brasil
Retórica golpista
Ainda que os livros de História relatem vários momentos de turbulência política, passando pela Guerra da Independência (1822), pelo golpe militar que deu início a um período de ditadura (1964-1985) ou o impeachment de Dilma Rousseff (2016), o episódio na Praça dos Três Poderes é o que está mais presente na memória dos brasileiros, não só porque é o mais recente, mas também porque espelha a fragmentação da nação nos dias que correm.
A revolta pela derrota eleitoral levou os apoiantes do antigo presidente, Jair Bolsonaro, a alimentarem uma retórica de violência golpista que acabou por explodir no dia 8 de janeiro, quando, ao invadirem as sedes dos três poderes, tentaram destituir Lula da Silva do cargo de chefe de Estado. O episódio, no qual se registaram atos de vandalismo inqualificáveis, foi comparado com o golpe militar de 1964, que resultou na deposição de João Goulart.
Para Raquel de Caria Patrício, professora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP), há agora uma grande diferença: "O objetivo dos terroristas era alcançar a rutura institucional, mas, desta vez, tal não ocorreu". Ainda assim, a especialista lamenta que a invasão tenha ocorrido "sob o olhar complacente da Polícia Militar do Distrito Federal", e que grande parte da população ainda esteja sob a alçada dos ideais do ex-líder, que está a ser acusado de incitar a invasão ao Congresso, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal.
No futuro, vários desafios esperam o atual líder, porém, a analista não acredita que a tentativa de um novo golpe de Estado seja um deles. "As instituições democráticas do Brasil funcionam à altura", considera.
Peru
Seis anos, seis presidentes
Um mês antes, a detenção do presidente do Peru, Pedro Castillo, marcou mais um episódio de mutabilidade política na região. Desde 2016, o país já conheceu seis presidentes, na sua maioria destituídos ou que renunciaram após polémicas ligadas a corrupção.
Atualmente, o Peru está a passar por uma onda de violência de proporções amplas. Já morreram 60 pessoas devido a confrontos que começaram depois de o Congresso ter derrubado Castillo, a 7 de dezembro de 2022. Raquel Patrício lembra que o presidente estava a ser "investigado em processos de corrupção e, por isso, tentou dissolver o Congresso" mas, como não obteve apoio, foi destituído.
A vice-presidente, Dina Boluarte, assumiu o cargo, mas a ascensão da política de 60 anos abriu a porta a uma anarquia - para o qual ainda não há fim à vista. Os manifestantes pedem a antecipação de eleições, porém, a nova chefe de Estado tem tido mão de ferro. "Não terá a vida facilitada", antecipa a investigadora. Este sábado, o cenário de caos obrigou ao fecho de Machu Picchu, a maior atração turística do país.
Argentina
Economia frágil e corrupção
Se "há um século era um dos países mais ricos do Mundo", recorda a analista política, a Argentina vive, nos dias de hoje, mergulhada num panorama económico de grande vulnerabilidade. O Estado assiste a uma nova crise que, somada à dura situação política no seio da coligação que governa desde 2019, está a abalar a sociedade. "A economia em queda livre na Argentina tem sido uma situação que está longe de ser semelhante à que marcou a década precedente", avalia Raquel de Caria Patrício.
O Estado do Cone do Sul terminou 2022 com a segunda maior taxa de inflação do Mundo, apenas atrás da Turquia. Como resultado, o país enfrenta uma conjuntura de comoção política. O presidente argentino, o peronista Alberto Fernández, tem feito várias remodelações no Executivo, o que, tal como a condenação da ex-vice-presidente, Cristina Kirchner, não tem sido bem recebido, alavancando protestos.
A 6 de dezembro de 2022, Kirchner, que também já ocupou o posto de primeira-dama, foi condenada a seis anos de prisão e inabilitação vitalícia, após ser considerada culpada de corrupção. Apesar de a sentença ter sido criticada pelos apoiantes, o caso volta a colocar a nação, ferida pelos escândalos de corrupção, nas capas dos jornais de todo o Mundo.
Venezuela
Chefe de Estado agarrado ao poder
A crise na Venezuela, já apontada como a pior contração económica registada na América Latina desde 1950, arrasta-se desde o Governo de Hugo Chávez (que liderou até morrer, em 2013) e tomou grandes proporções durante a era de Nicolás Maduro.
"A dependência do petróleo e o baixo nível de diversificação da economia fazem com que a nação surja vulnerável aos choques externos", explica a investigadora, acrescentando que "foi neste contexto que a população saiu para as ruas e, rapidamente, o prolongamento dos protestos originou uma crise humanitária e institucional, na medida em que Juan Guaidó se passou a assumir como o líder da oposição, tendo como objetivo destituir Maduro".
No ângulo da analista, o facto de Maduro "estar agarrado ao poder verte o país para uma crise grave". O quadro de precariedade é retratado num relatório da ONU que apontou, esta semana, a Venezuela como o país da América do Sul com o maior número de pessoas a passar fome.
Chile
Insatisfação constante
Embora a eleição de Gabriel Boric, em dezembro de 2021, tenha sido um marco, já que o presidente foi, na juventude, um líder estudantil que encorajou uma geração a sair às ruas para exigir mudanças sociais, o Chile continua a lutar contra uma crise política e social, que, de acordo com a analista do ISCSP, "não diminuiu de intensidade desde as convulsões de 2019".
Há quatro anos, quase dez mil integrantes das Forças Armadas foram mobilizados para atuar contra os protestos de cerca de um milhão de chilenos, que se manifestavam contra o aumento dos passes de metro, marcando a primeira vez, desde a ditadura (1973-1990), que o Exército foi chamado a intervir.
No entanto, "a pandemia veio confinar a população de ânimos arrebatados, adiando o referendo, que veio a realizar-se em outubro de 2020, sobre se o país deveria, ou não, substituir a Constituição de 1980, elaborada durante a ditadura", explica Raquel Patrício, ao recordar que quase 80% dos chilenos votaram "sim".
No ano seguinte, a Direita de Sebastian Piñera, ex-presidente do país, viu-se diminuída, o que levou à elevação de Boric, amparada pelo movimento feminista chileno, já que, enquanto candidato, se mostrou um defensor do direito ao aborto. Contudo, apesar do balão de oxigénio trazido pelo líder, os consequentes anos de dificuldades ainda não lhe permitiram oferecer mudanças estruturais aos chilenos.