Quem é e o que quer o primeiro-ministro holandês que fez tremer a União Europeia?
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Quem assistiu às declarações do primeiro-ministro português, António Costa, à porta do gabinete do homólogo holandês, Mark Rutte, numa ronda europeia para amaciar os "frugais" face às necessidades dos mediterrânicos que levaram o pior estalo económico da pandemia, não pode ter ficado indiferente àquela minúscula interrupção. Costa larga a resposta a meio e grita um amigável "Hey Mark, bye!" e a câmara desvia-se para mostrar o frugal-em-chefe sair, de bicicleta e braço no ar, aquele sorriso compulsivo nos lábios. Seguia ali o novo "vilão" da Europa, conquistada que fora a antiga vilã alemã Angela Merkel. Mas quem é este líder de um país pouco mais do que pequeno que quase arruinou a aprovação do fundo de apoio comunitário pós-pandémico?
Chama-se Mark Rutte, tem 53 anos e, como se viu, desloca-se de bicicleta para todo o lado, indiferente às agruras do céu. Solteiro empedernido e discreto, vive sozinho num apartamento de Haia, cumprimenta quem cruza, toma café na rua, continua a dar aulas semanais de cidadania e direitos sociais. Benjamim de sete irmãos, é filho da irmã da primeira mulher do pai e herdeiro de um história que começa na Indonésia, onde o patriarca Rutte, Izaak de seu nome, tinha um negócio de importação-exportação. Petronella, a primeira mulher, acabou num campo de concentração aquando da invasão japonesa. Morreu.
Era tempo de guerra, a segunda mundial. Izaak desposou Mieke, a irmã de Petronella e Mark partilha hoje irmãos e primos numa confusa relação. Dois já se foram, um levado pela sida. O pai despediu-se há 32 anos e a mãe foi protagonista da mais dolorosa presença pública diária de Rutte nesta pandemia: aos 96 anos, faleceu num lar ao qual o filho não pôde ir despedir-se, impedido pelas regras de combate à covid-19.
A qualidade: ser flexível
Rutte é descrito assim por quem o conhece, capaz de uma coisa e do seu contrário se as circunstâncias o exigirem. Um homem de "convicções flexíveis", escreve o francês "Le Monde". Mark, "ó dócil", diz um dos seus ministros, porque não aprecia opções fechadas. Sobre Deus: 51% dele acredita, 49% não, diz o próprio, um artífice do compromisso sem capitular, acrescenta o britânico "The Economist", que vai até recordar o "Vigário de Bray" que ora era papista ora protestante consoante a necessidade e diz de Rutte ser um "vigário sobrecafeinado", "misturando um bom humor maníaco com sermões sobre a importância de cada um gastar de acordo com os meios que tem".
Estará aí a génese da tese com que conduziu os outros frugais ao longo da negociação do fundo de recuperação europeu de 750 mil milhões de euros e do orçamento comunitário de 1100 milhões. Dinheiro sim, mas só contra reformas fiscalizáveis, como as que, alegam, os do sul não fizeram. Ou seja, Europa sim, sempre, mas alto lá quando o assunto é dinheiro. Aí, Rutte é o euroceticismo suave que lhe garante, internamente, que o seu Partido Popular para a Liberdade e a Democracia (conservador liberal) não perderá eleitores para a extrema-direita holandesa nas próximas eleições, marcadas para março 2021. E que prolongará o reinado que conduz desde 2010 e que já é o segundo maior da Europa depois do de Angela Merkel - a frugal-em-chefe atrás da qual a Holanda se escondia.
A conversão da chanceler alemã à solidariedade e a saída do Reino Unido (outro frugal-em-chefe quando toca a avançar euros) fizeram de Rutte o incontornável. Impôs condições, cedeu convicções e recebeu concessões. No final, saiu a sorrir.
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A origem dos frugais - A designação é do britânico "The Financial Times" (FT) e eles adotaram-na. Holanda, Áustria, Dinamarca, Suécia e, mais recentemente, Finlândia são os "frugais" da União Europeia.
A frugalidade - "Austeridade" era a palavra da crise de 2008, com toda a carga negativa que fez os resgatados tremer com a crise pandémica. A ajuda do FT foi preciosa. "Frugal" é bem menos duro. Um frugal é aquele "que come pouco ou com moderação", "com economia", dizem os dicionários. Quem não é frugal, por oposição, será esbanjador em coisas inúteis.